segunda-feira, 28 de abril de 2014

HILDA HILST




Que as barcaças do tempo me devolvam
a primitiva urna das palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
como desde sempre o conheci: pungente
mas cintilando de vida, renovado
como se o sol e o rosto caminhassem
porque vinha de um a luz do outro.

Que me devolvam a noite, o espaço
de me sentir tão vasta e pertencida
como se as águas e a madeira de todas as barcaças
se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.


                                                              Hilda Hilst



quinta-feira, 24 de abril de 2014

PAU DOS FERROS


Yuri Hícaro

Aboiando a carne das ruas,
lambendo as suas feridas,
bêbados e profanos e deuses
também lamentam.

Laços que prendem brandamente;
a Barragem,
desaguada do Junco e da Gangorra

do Benedito à Matriz
ou uma pernoite em Jackeline Drinks...

O Riacho do Meio planando
à luz do dia.

Os homens nos bares
embriagando-se ao esquecimento
das amantes,
as utopias sadias...

a luta é uma explosão.

A Independência e seus ciclistas,
as bibliotecas esquecidas
com seus cadeados,
o Alto da Telern,
o beijo na Praça dos Namorados.

Pau dos Ferros
o ouro dos teus seios
é o caminho de leite que persigo.

Vinte e cinco de Março,
Bairro Paraíso;

Princesinha - o bairro das meninas -
(seguram elas os olhos nas janelas).

Manoel Deodato é força de vontade,
do São Geraldo à liberdade.

                                               
                                                                    Yuri Hícaro




quarta-feira, 16 de abril de 2014

VI UMA CAPELA TODA DE OURO


Poeta e Pintor Inglês

Vi uma capela toda de ouro;
ninguém passava os seus umbrais;
muitos lá fora em pé choravam,
com orações e prantos e ais.

Vi levantar-se entre os pilares
brancos da porta uma serpente;
após forçar, forçar, forçar,
rompe ela os gonzos de ouro à frente,

e pelo chão que recamavam
rubis e contas a brilhar,
toda a extensão viscosa arrasta,
até chegar ao branco altar,

e lá vomita o seu veneno
por sobre o Vinho e o Pão divinos.
Voltei-me então para um chiqueiro,
e me deitei entre os suínos.

                                                                   William Blake




terça-feira, 15 de abril de 2014

NOTURNO


Poeta Baiano

A minha noite é imensa dentro da sua largura,
e de um canto a outro é cheia de grilos -
deuses do Oriente que cantam para as estrelas
que se deleitam e dançam seu brilho para mim.

A minha noite é silente e calma - uma tempestade
que avança na imensidão dos meus abismos
como vermes a roer minha carne e meu prazer.

Dentro da minha noite tem uma vaca
que é sagrada e é um templo, uma igreja:
o seu chocalho é o sino que a todo instante
anuncia a vida e me convida para o agora.

A minha noite é enorme e dentro dela cabem
as mil e uma noites, bilhões de estrelas
                                            e toda a poesia.

                                              José Inácio Vieira de Melo



quinta-feira, 10 de abril de 2014

DECISÃO



Poeta Baiano



Se me buscarem, não vou.
Se me ofertarem, não quero.

Se me disserem quem sou,
direi que não sou, e espero.

Direi que esperar é tudo;
e que o que espero é nada;

e quando viajo, mudo
conforme as feições da estrada.

                                                           Roberval Pereyr



segunda-feira, 7 de abril de 2014

COM OS OLHOS






Teus sorrisos de vinho não respondem
nada disto ou daquilo o que desejo.
Quando muito se mostram, mais se escondem
e se penso que enxergo, menos vejo.

Tenho notado, a noite está contigo
encobrindo as mentiras que me fala.
A julgar as verdades que em mim cala,
parece que ela está também comigo.

Imagino o que posso e o que sonhei:
entre luzes e sombras, as certezas;
entre cruzes e espadas, já não sei.

Por isso, não me atiça que eu te tomo,
despido de pudores, sutilezas,
te como com os olhos, mas te como.


                                                 Cid Augusto



sábado, 5 de abril de 2014

APAGÃO


Poetisa Carioca




Que atraso
Os que lamentam a solidão
Que sufoco
Os que suplicam multidão
Que vazio
Os vasos secos pelo jardim,
Sem sementes, sem grão.
É admirável a fome d'um cão
Abandonado
Jogado no chão
Dia-a-dia
Sem dizer não.

Que desastre
Que desgaste
Desistir a vida.

Que maldade
Malandragem
Que ausência de bondade.

Que atraso
Os que lamentam a solidão
Não sabem que são todos Eles
Um por um, a multidão?


                                                         Ana Pérola Pacheco