quinta-feira, 23 de outubro de 2014

AFASTEM-SE

Poeta Potiguar
Ontem eu dormi
rodeado de serpentes
com olhares ardentes
acordei
com hienas
desatadas
almocei
com coiotes
e urubus ao meu lado
jantei
com um bando
de cachorros vira-latas
e todos esses seres
nojentos, pavorosos e imundos
são melhores companhia pra mim do que vocês
que se dizem homens de bem
políticos honestos
padres e pastores puros
chefes de família respeitáveis
delegados honrados
e traficantes desgraçados
Fiquem longe de mim
porque eu sempre
estarei do outro lado.


                                                                        Anchieta Rolim


terça-feira, 21 de outubro de 2014

CONFIDÊNCIA

Poeta Português 
A confidência tem que ser a mais pura
no olhar de todas as transparências.

Só assim saberei de forma abnegada
abrir as veias e transportar comigo
o segredo que carregas na iminência
de seres ave.


                                                                       Joaquim Monteiro



quinta-feira, 16 de outubro de 2014

PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

João Cabral de Melo Neto

1

Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.

2

Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.

Como não há noite
cessa toda a fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;

como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.

3

Neste papel
pode teu sal
virar cinza;

pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.

(teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera.)

Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.

(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera.)

4

O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; rompendo
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça.)

5

Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.

Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esse lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)

que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido
contra o açúcar do podre.

6

Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.

7

É mineral o papel
onde escreve
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

8

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.

(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
caiu, fruto!

Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:

então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maça
resta uma fome;

onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.


                                                                        João Cabral de Melo Neto





terça-feira, 14 de outubro de 2014

VAI-TE AMIGA

Poeta Potiguar

Vai-te solidão
leva contigo o ódio...
vai com o vento
aos seios nórdicos, de desafetos.

Vai-te solidão
leva contigo o medo
mas deixa a esperança
que ainda vigora, na revolução.

Vai-te solidão
leva contigo o desespero,
e que a distância o queime...
(noite de fogo e dor...noite de apelo)!

Vai-te, amiga...
com devastadora ignorância,
mistura-se às tribulações
de calabouços, com desenvoltura.

Vai-te, oh solidão,
mas volta,
para, na morte,
vigiar minha sepultura.


                                                                             Yuri Hícaro



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

ONDE

Poeta Potiguar
Entre a ânsia
e a distância
onde me ocultar?

Entre o medo
e o multiapego
onde me atirar?

Entre a querência
e a clarausência
onde me morrer?

Entre a razão
e tal paixão
onde me cumprir?

                                                                                Zila Mamede