quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A QUEDA

Engenhoso Poeta Português




E eu que sou o rei de toda essa incoerência,
eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
e giro até partir...mas tudo me resvala
em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de oiro,
volve-se logo fácil...ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesoiro,
morro à míngua de excesso.

Alteio-me na cor à força de quebranto,
estendo os braços de alma - e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra - em nada me condenso!...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso me esmagar,
- vencer às vezes é o mesmo de tombar -
e como inda sou luz, num grande retrocesso,
em raivas ideais ascendo até ao fim:
olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...

Tombei...
e fico só esmagado por mim!

                                        Mário de Sá-Carneiro


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A MENINA MENDIGA

Mestre Patativa

De pés descalços sobre o frio chão.
Roto o vestido, em desalinho a trança.
De porta em porta a mendigar o pão.
Vai pela rua uma infeliz criança.

O seu estado causa compaixão.
Ninguém lhe nota um riso de esperança.
Sempre a estender a sua magra mão.
Canta, pedindo com voz fraca e mansa:

- Ó nobre rico, tende piedade!
Vede como ainda no verdor da idade
são dolorosos os martírios meus!

Olhai a pobre que com fome cai:
Não tenho mãe nem conheci meu pai,
dai-me uma esmola pelo amor de Deus!


                                                             Patativa do Assaré




sábado, 22 de fevereiro de 2014

MARGINAIS





Poeta Maranhense

                         1
Marginal
é quem está à margem da margem
do sonho da realidade e da imagem

Marginal
é quem não paga a viagem
e antecipa os ritos de passagem

Marginal
é Cristo Buda Maomé Chaplin Disney
Einstein Bob Dylan João Paulo II Sousândrade
Madre Teresa de Calcutá and Guimarães Rosa

Marginal
é o sol que não nasceu quadrado

Marginal
é a poesia que nunca se vendeu ao diabo

Marginal
é a sensibilidade
quando não tira férias

Marginal
é o sertão
e a carne seca da miséria

Marginal
é a penitenciária de Pedrinhas
e as dunas de Barreirinhas

Marginal
é o comer a fome com farinha

Marginal
é ter apenas duas estações
verão e inverno

Marginal
é ser eterno

                       2
A poesia marginal
- não é marginal

A marginal Pinheiros
- não é marginal

O Palácio do Planalto
- não é marginal

Judas Iscariotes
- é otário: não marginal

O Rotary Club da Praia Grande
- não é marginal

O gerente do Banco Nacional
- jamais será marginal

                      3
Marginal
é a pureza que se trafica

Marginal
é quem suja as mãos
da beleza da vida

Marginal
é o amor que precisa de preservativos
pra não morrer na estrada

Marginal
são os lábios da mulher amada

Marginal
é Osama Bin Laden
você e eu

Marginal
é Deus


                                                               Luis Augusto Cassas


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

ALMA LAVADA


Maria Luiza da Gama e Silva Foz


Trago a alma lavada
de toda a vida que nela havia.
Voejaram os colibris,
ficou apenas cansaço.
Tua sombra em mim entranhada
tudo queima, tudo devora.
O que de meu ainda te resta
busca-te em sonhos
enquanto ardemos nas madrugadas.
Se estás morto, se estou louca,
nada responde a fria alvorada.

                                                       Luiza Foz

ETERNIDADE



Saudoso poeta cearense



Em laudas de mármore
supostas virtudes
de homens e heróis.

Nuvens em chamas
velejam no céu
nas rotas do Tártaro.

A eternidade
passeia indiferente
sobre tufos de relva.

                                                   Francisco Carvalho

sábado, 15 de fevereiro de 2014

PEDRO FERNANDES


Poeta Potiguar




(i)
nomes estranhos
me entranham

– flores, dores...
ares de aço
poesia, afasia

sobras de sonhos
cores, pássaros
postais sem selo –

(ii)
as noites custam
muitos nomes

ausência, bolsos vazios
versos negros cerzidos
na margem branca
do tempo

corpo nu contra luz
gestos de amor desalmado
intimidades que nos apavora

(iii)
de fora do poema
todo poeta está só
é entranha vazia de nomes

para um verso
há de sobrar
palavras despidas de ternura
usura, procura

há de sobrar
mãos supérfluas
palavras que não soubemos aprender

(iv)
cuido de estranhar-me
ir contra a palavra

e em mim nada morre
é tudo espera

ora corre para um
passado desarrumado

um presente fazendo-se
e o futuro num canto
enviesado do sorriso

nomes estranhos
nãos não dados
partida
                                                     Pedro Fernandes

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

POEMA



Meus olhos têm telescópios
espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.

Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.

Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.

                                                           
                                                                João Cabral de Melo Neto




                                   

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

OS AMANTES


Julio Cortázar - Gênio Argentino




Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.


                                                    Julio Cortázar

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

ESPELHO


Sylvia Plath



Sou prata e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo me serve e sorvo...
Tal qual é, sem nódoas de amor ou desgosto.
Não sou cruel, sou sincero –
O olho de um pequeno deus, quatro cantos.
Converso o tempo todo com a parede.
É rosa, mofada. Olho-a tanto que acho
Que já é parte do meu coração. Mas racha.
Faces e escuridão nos separam mais e mais.

Agora sou um lago. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas águas sua face real.
Então fita aqueles farsantes, a vela e a lua.
Vejo suas costas e a reflito fielmente.
Ela retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
Todas as manhãs seu rosto repõe a escuridão.
Em mim se afogou uma menina, e em mim uma velha
Nada atrás dela dia após dia, como um peixe terrível.


                                                                          Sylvia Plath

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO


POETA PARAIBANO


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

                                                     Augusto dos Anjos



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

PAIXÃO EM CRETA


Poética Natalense





Evite ruas escuras
riscos desnecessários
rotas retalhadas
atalhos
passos descompassados
bordas que não se encontram
margens que não se acham
Evite
ou realmente se entregue
se quebre
entre no labirinto do minotauro
(novelo, cara e coragem)
mesmo que sair ileso
seja raro

                                                Iracema Macedo

sábado, 1 de fevereiro de 2014

MALDITOS




Santo, santo, santo
assim te chamam
Santo

Bendito sois
Malditos são.


                                  Anchieta Rolim