segunda-feira, 24 de novembro de 2014

FILIAÇÃO

Murilo Mendes

Eu sou da raça do Eterno.
Fui criado no princípio
e desdobrado em muitas gerações
através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
tropeçando em cabeças e chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
do amor que unirá todos os homens:
vinde a mim, órfãos da poesia,
choremos sobre o mundo mutilado.

                                                                           Murilo Mendes





sábado, 22 de novembro de 2014

URBANA

Claudia Roquette-Pinto

Copacabana. Vigésimo andar.
Nuvens de calamidade.
Teu olhar japonês
trai massacres.
Maciez insólita pele
beijo de libélula
um instante.
E o sorriso:
inferno de relance. O neon do cartaz
te faz desigual a cada esquina.
Contra o fundo infinito lilás
nossa última fotografia.
Capaz de qualquer ferida
abraço num gesto longo
toda a avenida.

                                                                        Claudia Roquette-Pinto


terça-feira, 18 de novembro de 2014

IDEÁRIO

Mário Gerson

Não rotule seu poema.
As manhãs tragam os nossos mistérios.
Há muito de solidão nas coisas mais próximas
e a poesia nos chama em qualquer lugar.

Não rotule sua escrita, seus versos.
A vida clama lá fora e sem palavras de ordem.
Carpe Diem dos árcades em nós!

Há muito de alegria nas manhãs de céu claro
e por que rotulamos o ideário
de uma vida serena sempre e após ?!

Há alguém folheando o jornal e lendo
a sua escrita em versos elaborada...
Há alguém sorrindo, ao longe,
sua alegria acumulada.

Não rotule seus poemas...
Eles existem para além de suas penas.

                                                                            Mário Gerson


terça-feira, 11 de novembro de 2014

INFÂNCIA

Yahya Hassan
CINCO FILHOS EM FILA E UM PAI COM PAU
MÚLTIPLOS CHOROS E UMA POÇA DE URINA
ESTENDEM SEMPRE A MÃO
POR ISSO A PREVISIBILIDADE
ESSE SOM QUANDO LHE ALCANÇAM OS GOLPES
A IRMÃ QUE PULA RÁPIDA
DE UM PÉ A OUTRO
A URINA É UMA CATARATA QUE LHE DESCE PELAS PERNAS
PRIMEIRO UMA MÃO ESTENDIDA LOGO A OUTRA
PASSA-SE LONGO TEMPO OS GOLPES CAEM ALEATORIAMENTE
UM GOLPE UM GRITO UM NÚMERO 30 OU 40 ÀS VEZES ATÉ 50
E UM ÚLTIMO PAU NO CU AO SAIR PELA PORTA
ELE PEGA MEU IRMÃO PELOS OMBROS E O ENDIREITA
CONTINUA PEGANDO E CONTANDO
E OLHO PARA O CHÃO ESPERANDO MINHA VEZ
MÃE QUEBRA PRATOS NA ESCADA
AO MESMO TEMPO EM QUE A TV AL JAZEERA TRANSMITE
HIPERATIVAS ESCAVADEIRAS E COLÉRICAS PARTES DO CORPO
A FAIXA DE GAZA AO SOL
QUEIMAM-SE AS BANDEIRAS
SE UM SIONISTA NÃO RECONHECE NOSSA EXISTÊNCIA
SE É QUE EXISTIMOS
QUANDO OFEGAMOS ANGUSTIA E DOR
QUANDO ESTAMOS BOQUIABERTOS BUSCANDO AR OU SENTIDO
NA ESCOLA NÃO NOS DEIXAM FALAR ÁRABE
EM CASA NÃO NOS DEIXAM FALAR DINAMARQUÊS

UM GOLPE UM GRITO UM NÚMERO


                                                             Yahya Hassan



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

OLHO DE LINCE

Waly Salomão
quem fala que sou esquisito hermético
é porque não dou sopa estou sempre elétrico
nada que se aproxima nada me é estranho
                                   fulano sicrano beltrano
seja pedra seja planta seja bicho seja humano
quando quero saber o que ocorre a minha volta
ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
experimento invento tudo nunca mais me iludo
quero crer no que vem por aí beco escuro
me iludo passado presente futuro
                                   urro arre i irru
viro balanço reviro na palma da mão o dado
                                   futuro presente passado
tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo
e fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão
e na sequência de diferentes naipes
                                   quem fala de mim tem paixão


                                                                             Waly Salomão