segunda-feira, 28 de setembro de 2015

TARDES QUENTES



Gustavo Luz

Minha mãe
que nasceu em Caicó
correra das secas e
embaixo de oiticicas
brincara sua infância
olhava com muita
             desconfiança as
             descobertas vindas
             pela TV

No são-joão
tudo era
adivinhações
nas calçadas
as fogueiras
              e ela sempre falava
              nas tardes quentes
              dos familiares que
insistiam em viverem da terra
              enquanto
              se passava as roupas
              em ferros de brasa.


                                                                           Gustavo Luz




sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O TEU DEMÔNIO



Iracema Macedo


O teu demônio me segue
anos a fio
ele tece flores para mim
divide meu corpo em partes
Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
eu aparo suas bordas seu rabo seus chifres
O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado
O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre
O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dele a galope
eu vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda
Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma.


                                                                        Iracema Macedo



quarta-feira, 23 de setembro de 2015

SOFRO DE PERDAS E ACHADOS



Clóvis Neto


Sofro de perdas e achados.

Todos os dias, nos momentos mais difusos,
Inesperados,
Perco um pouco de minha alma.
Atrapalhado, tento erguer a mão, tímido,
Para perguntar: "por que agora?"

Mas nunca consigo sequer mover-me
Diante de tal afronta a um ser alheio.

Então sempre lembro que sofro.
Sim, sofro.
De perdas e achados.

E logo em um outro momento, encontro um pouco d'alma,
Lívida, muito viva,
Que me faz a tudo entender.
Um olhar desnudo e mudo.

Depois a vida começa a fazer algum sentido,
Mostrando-se toda, completa,
Absoluta.

Pois sofro, é verdade que sofro.
De perdas e achados.

Mas sofro mesmo
é de ser humano.


                                                                             Clóvis Neto





terça-feira, 22 de setembro de 2015

DEPENDÊNCIA




Ruy Rocha


Dependo de um político
Uso uma bengala
Que me deixa paralítico


                                                                               Ruy Rocha



segunda-feira, 21 de setembro de 2015

JARDIM DE PIRANHAS

                                                                                                           

                                                                                                          pro Piranhas fluir feliz



Nonato Gurgel



todo rio é pre-
texto de olho fixo
que o fite e flua
na busca de tê-lo

na lição do rio
cursa-se seu curso
nos discursos hídricos
nas memórias líquidas

nada lírica
épica perene


                                                                             Nonato Gurgel




sexta-feira, 18 de setembro de 2015

IÇA



Carlos Gurgel


iça
sonhos e moinhos
sobre
o deserto do nada

iça
teus sonos e vexames
sobre
a volúpia de um mar torto

iça
tudo que um dia partiu
como obra
de tuas sobras e sombras

e sobrevoas
como faminto condor
todos seus pulsos e ruínas.



                                                                              Carlos Gurgel




terça-feira, 15 de setembro de 2015

DE QUE VALEM OS ELOGIOS DOS AFOITOS



Florence Dravet


De que valem os elogios dos afoitos, dos
apressados e dos apaixonados? Certos sorri-
sos em bocas de mel trazem aos olhos o des-
conforto dos venenos. Gosto dos que atentam
para a profundidade subjacente dos mapas
da pele. Dos que gozam a vida devagar e não
se abalam com o tambor  ao longe. Dos que
correm o risco da sabedoria em tempos de
loucura. Dos verdadeiros loucos.

Diante do precipício da nossa incoerência, às
vezes, a horizontalidade do enfrentamento aju-
da a vencer a vertigem. Outras vezes, apela-
mos ao vertical dentro do vertical.

São poucos nossos instantes acordados.


                                                                            Florence Dravet




segunda-feira, 14 de setembro de 2015

APARTHEID SONETO







                                                                      Avelino de Araújo




sábado, 12 de setembro de 2015

A MÁQUINA DE AVESSAR OS DIAS DA MINHA AVÓ



Theo G. Alves


minha avó
inventou uma máquina
de avessar os dias:

antes de sua morte
pôs-se a engendrar
memórias
- gente com asas
- estranhas histórias do tempo
- cães de nomes improváveis
e lindos

eliminou
de seus dias as
pessoas reais -
que pode
haver de mais tedioso
que gente
concreta
ou tijolos de barro e pedras?

minha avó
com suas máquina de
avessar os dias
acordava
a casa no meio da noite
ironizava
a invenção do vento
esquecia
os nomes inúteis das filhas
recriava
o absurdo nãolinear do tempo.

era uma máquina
de costurar avessos -
retalhos
coloridos do tempo:

guardeia para mim
- minha avó
e sua máquina de aventuras -
para usá-la
quando for
meu tempo.


                                                                              Theo G. Alves




quarta-feira, 9 de setembro de 2015

PAISAGEM


Racine Santos


De fogo um gavião sobre a caatinga
Sentinela de antigos carrascais
E sobre um chão desfolhado um ouro pinga:
O silêncio tem pontas de punhais

O vento não tem voz. E os animais
Deixam rastros de cinza na paisagem
Inculta e quebradiça nos pragais
Onde as aves se despem da plumagem.

Mas essa paz de praça abandonada
Por tropéis de repente é assaltada
Espelhando no campo sons de lida.

São galopes de antigos cangaceiros
Que lutaram e tombaram em seus terreiros
E que voltam sem peias e sem brida.


                                                                             Racine Santos




terça-feira, 8 de setembro de 2015

POEMA DA INSÔNIA



que? você está insone
e não está radiante ?
quer então descontinuar-se
inanimar-se
dormir?

e a lua
a lua coração do céu
não lhe transfunde
prazer de existir ?

os diademas de edson
nuançando as ruas
não lhe infundem desejo
de canoniza-lo, a edson ?

Como não apaixonar-se desses vagalumes
vindos das curvas do trairi
para o agora dos seus olhos ?

E esses himens de ouro
imersos em musgos públicos
essas confissões segregadas
esses ciúmes que se amam?

voando de jerusalém
vem vindo um passarinho
e com o mundo sobre as asas
penetra sua sala

Como não enternecer-se desse passarinho ?
Como não aconchegar-se nessa insônia
impregnada de você?



                                                                    Jaumir Andrade





segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O TEMPO CONTRA O TEMPO



quando vier o esquecimento
(demolição do momento),
a quem doar a canção?

quando a imagem
(nuvemsemelhança)
acampar o seu rebanho na lhanura da tarde

e o espaço ágil
sequestrado
for menos que lembrança
(sem mais o engano poderoso da Forma),

quem sustentará
o muro silencioso e frágil da
solidão?


                                                                Miguel Cirilo




sábado, 5 de setembro de 2015

O CORPO BRANCO NO CHÃO



o corpo branco no chão
não faz esforço.
a luz circula na intimidade.
a nudez é antiga.
o quarto também.
as palavras estão se arrumando
para um novo poema.
as coisas, postas em sossego
repousam de qualquer modo.
anônima é a presença da noite.
os chinelos esperam.
eles não sabem, mas esperam.
- pode alguém exigir mais para dormir?


                                                         Miguel Cirilo





quinta-feira, 3 de setembro de 2015

TENDÊNCIA


3

Sofro um quadrado contorno
- moldura em torno de mim
do que já fui sem retorno:
- quem ao retrato deu fim ?

pergunto porque não o vi,
que por tê-lo não me empenho:
prefiro o vago desenho
- menino, que não perdi.

por ser no tempo, o retrato
tem muito vidro partido:
nele, nada é permitido
mais do que foi: é exato
demais, para não ferir.

o desenho, não demora.
escolhe, pode fingir.

sim, mais do que se pressente,
irremediavelmente
o retrato é o morto em mim:
foi bom que lhe dessem fim.


                                                            Miguel Cirilo




quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A PORTA


Deífilo Gurgel


Deste lado da porta é noite, já.
Os homens adormecem seus cuidados.
Pelo campos desertos, os arados
pesam, negros e inúteis, ao luar.

Deste lado da porta ruge o mar
dentro da noite. Os pássaros cansados
pousaram nos meus olhos tresnoitados
e dormem ao relento, sem cuidar

que do outro lado desta porta é dia
e que somente um sopro bastaria
para esta porta abrir-se do outro lado.

Então, de súbito, amanheceria
e o que em sonho repousa, deste lado,
do outro lado da porta acordaria.



                                                                              Deífilo Gurgel