quarta-feira, 24 de junho de 2015

DEFINE A SUA CIDADE

Gregório de Matos Guerra

De dois ff se compõe
esta cidade ao meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim que os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.


                                                         Gregório de Matos Guerra





quarta-feira, 17 de junho de 2015

OLHO POR OLHO

Anchieta Rolim
Ressurgirei das cinzas
sujo, imundo
trazendo comigo
apenas as certezas

Caminharei
de cabeça erguida
entre os mortos
serei o sobrevivente

Muitos
vão querer lavar-me
de mim
tirar as impurezas

Será tarde
não aceitarei.

                                                                           Anchieta Rolim




quarta-feira, 3 de junho de 2015

MUSA PARALÍTICA

Magela Cantalice

Nasci para cantar as coisas tristes,
para falar dos filhos rejeitados,
das pessoas sem casa nem sustento
que não têm um tostão para comprar
um metro, ao menos, de madapolão...

Eu canto a dor das massas proletárias
que gemem sob o guante dos burgueses...
Eu canto a dor dos choros sufocados,
canto a mísera sorte dos vencidos
e as ruínas desertas de Hyroshima!

Meu canto é o canto dos desventurados...

Eu sou aquele que ficou sentado
à porta das igrejas, mendigando...
Eu sou aquele que nasceu sem vista
e se meteu num beco sem saída.

Eu sou aquele que não teve amor!
Eu fui o pobre que morreu de fome,
depois de andar a pé léguas e léguas
atrás de um coração compadecido.

Eu canto a angústia atroz dos oprimidos...
Eu canto a solidão dos prisioneiros,
eu canto a indignação dos revoltados
e os grandes idealistas fracassados
e a tristeza abafada dos hospícios
e as misérias físicas da carne...

Eu canto a dor dos partos infelizes
e a negação dos ventres infecundos.

- Quem quer me revelar as suas mágoas? ...

Eu sou o homem que levou a vida
no desconsolo de ser aleijado...
Eu sou o poeta que morreu tossindo,
sob o vergão da vil tuberculose.

Eu sou aquele que dormiu no chão,
sob a marquise dos arranha-céus,
coberto por três folhas de jornal...

Nasci para cantar as coisas tristes.

A musa que me inspira anda de preto
e manca de uma perna: é paralítica!


                                                                         Magela Cantalice