terça-feira, 13 de setembro de 2016

SONETO DISTRAÍDO I



Tiago Dias Oliveira



pode ser leve a vida
quando a brisa aveluda a pele.
os poros recebem a lida
ela por si se revele.

no seio da imagem que se afinca
cresce outra sem qualquer vaidade
enquanto brilha e se esconde - brinca
como menino: cresce e desaparece a verdade.

pode ser leve a vida
quando se esquece dela
para se deixar velejar

por todas as dores
capazes de nos reinventar
como botões na sina das flores.


                                                                        Tiago Dias Oliveira






terça-feira, 30 de agosto de 2016

DEMETRIOS GALVÃO


O Autor


o infinito
que criamos
dentro de nós

é um segredo
íntimo

sobrevive às
pequenas mortes
diárias

resiste
à conquista
estrangeira

se elabora
no silêncio





                                                                         Demetrios Galvão




quarta-feira, 24 de agosto de 2016

SÃO OS RIOS



Jorge Luis Borges



Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.








                                                                              Jorge Luis Borges




terça-feira, 12 de julho de 2016

DESPOJO



Priscila Merizzio



afundo a adaga
nas cartas do tarô

você cospe sangue
vísceras eclodem

seu corpo
adubo de sementes ou ervas daninhas
engorda vermes com salmonela

danço de rosto colado com a pá que o enterrou

o lobo uiva sobre a lápide de Crowley

seu vodu imolado suscita a ira de Netuno sobre Castor e Pólux






                                                                           Priscila Merizzio



AGRADO


Carlos Gurgel


escondi no quarto
meus olhos
encobertos de salivas
e saudades

lá também percebi
os teus braços
adormecidos de desejos
e vontades

no chão
junto ao tapete
dei pelos meus rastros
como se fosse regresso

e na janela
entre um luar e outro
a imaginação do coração
pulsando como se fosse uma criança


                                                                           Carlos Gurgel



segunda-feira, 25 de abril de 2016

REGINA AZEVEDO




A autora


sinto muito não ser assim suave
você disse que aquele pássaro
era da cor do meu cabelo

mas ele era vermelho

e nosso amor está em algum lugar
entre o voo e a extinção da espécie

meu cabelo é laranja
laranja porque sou poeta

(e prefiro ter cara de poeta
a ser bonita)

você estava andando na rua
viu um pássaro
e lembrou do meu cabelo

isso diz muito sobre
seus olhos
esses, sim, vermelhos


                                                                          Regina Azevedo






quinta-feira, 21 de abril de 2016

ALEX MOURA




O Autor


Na discrepância
casual do destino
de um marginal
num mundo
socialmente corrompido
por seres
que deixaram
de ser humanos vivos
para serem bichos
nesse mundo distorcido
mortos na inconstância do momento
na boca
exalando excremento
e na mente
exaltando o pensamento
de crescer
e ser
na fossa dessa era
o tolete evidente


                                                                             Alex Moura





ARDOR




Iracema Macedo


Um oceano inteiro não basta
para calar no meu peito
este murmúrio
de tantas formas de ardor
tantas formas de estar banida e só
e não há terra ou chuva
que arrefeça
esta porção de mim
que trago cálida
essa porção de mim
que trago presa
esse meu coração cheio de vespas


                                                                             Iracema Macedo



domingo, 17 de abril de 2016

POEMINHA BÊBADO




Marcelino Freire


ele chega e me aperta
peito dentro do peito
ao meu pobre coração
fala mais de um segredo
engole a minha saliva
me sequestra um beijo

aí depois vem com desculpas
me diz no outro dia
"é que eu estava bêbado"

ele pula em meu pescoço
me lambe cheiro por cheiro
molha de nicotina
todos os meus pelos
na cama me ama e grita
que é homem e não tem medo

aí depois vem com desculpas
me diz no outro dia
"é que eu estava bêbado"

ele chega em meu ouvido
contorcido de desejo
come meu rabo o bandido
me humilha de joelhos
clama assim que eu chupe
cada um de seus dedos

aí depois vem com desculpas
me diz no outro dia
"é que eu estava bêbado"

seu merda filho da puta
desculpas desse tipo de novo
já disse que não aceito
porque mais bêbado do que eu
neste mundo não existe
nenhum outro sujeito


                                                                                Marcelino Freire




terça-feira, 5 de abril de 2016

ESPÁTULA


Carlos Gurgel




petrificado tempo
onde a pobreza
mais que pobreza

não se sustenta

metrificado tempo
onde a nobreza
mais que nobreza

não se inventa

delicado tempo
por onde a leveza da vida
não se remenda



                                                                            Carlos Gurgel





segunda-feira, 4 de abril de 2016

SOL NA CASA 5 E LUA NA CASA 3




Leonam Cunha


Não controlamos as angústias
com fita métrica. Na intenção
de aninhar, coser abraços,
gozar e amar com precipício, eu vou.
Eu e alguém - que não chega,
que não chega porra não chega não -
seriamos aquele terreno abandonado,
por onde as moscas sobrevoam,
e se sobrevive bem com paus
e espinhos. Não quero
que me olhes como se me fosses
ver de novo, como se pudéssemos
esquiar em vasto passado.
Eu e alguém - que não chega,
que não chega porra não chega não -
seríamos a fotografia
de uma ancha tragédia efêmera,
um novelo sem começo nem fim,
os ossos de dois fósseis mortos de prazer
descobertos no futuro da civilização.


     
                                                                             Leonam Cunha





terça-feira, 22 de março de 2016

CARLOS NEJAR




O Autor



É noite
Noite desancorada
Noite imenso navio
A demandar outro céu

Noite torturada
Noites de anjos
Revoltados
A morder o horizonte

Noite alucinada
Floresta de febre
Cristais de delírio
Na noite parada

Noite com sede
Não podes reter
O sol
Nas tuas redes

Noite
Tua fome
Ninguém a consome

Noite

Do tempo
A embalar tempo morto

Noite
Desesperada
Não chegarás mais ao porto

Noite
Desesperada
Que farás do filho morto?

Noite a embalar o que fomos

Noite a chorar o que somos

Noite


                                                                               Carlos Nejar





sexta-feira, 18 de março de 2016

FASTIO POÉTICO



Clauder Arcanjo


O sol, belo no horizonte,
E o poeta indiferente.

A ameaça de chuva
Traz o halo de um arco-íris,
E a poesia quieta na ponte.

O fim do dia em lusco-fusco,
E o poema murcho...
No caderno, antes pura fonte.


                                                                            Clauder Arcanjo



terça-feira, 8 de março de 2016

ANA FARRAH BAUNILHA



Ana Farrah Baunilha



Porque eu nasci rachada
partida no meio
toda aberta
ausente de proeminências viris
e por isso não podia
sentar arregaçada, que nem meu irmão
andar sem camisa ou subir nas árvores
não podia brincar de lutinha, porque era
muito 'agarramento'
Eu saía quebrando tudo, de raiva
revoltadinha
quando ganhei o primeiro sutiã
queria ter feito estilingue com ele
pra jogar pedra no telhado da vizinha
_aquela faladeira!
Mas qual!
fui é virar alvo
das pedradas
na vida
(muito Geni)


                                                                             Ana Farrah Baunilha




segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

CHAMADO



Jacqueline Bulos Aisenman


falcatrua
a faca atua
tua face
disfarce
cem poderes
podres
sem querer
querendo ser
fases da lua
lunáticos
corpos celestes
testando
os limites
do universo...
imitando
as quedas
das estrelas...
elas dispersas
no cosmos
osmose...
ou o avesso
soa o sino
o destino
chama.


                                                                      Jacqueline Aisenman






domingo, 28 de fevereiro de 2016

DESADORMECER



David de Medeiros Leite 



Ingurgitados,
nossos úberes
desadormecem
alimentando o mundo.

A avidez
com que os sugam
põe em risco
o desjejum
de nossos filhotes
que, pacientes, esperam.





                                                                      David de Medeiros Leite




AMOR, S.M. (LAT. AMORE)



Matheus Arcaro 



Risquemos o amor dos dicionários;
apaguemo-lo dos livros;
extirpemolo dos discursos.

Qualquer definição de amor,
por mais completa que seja,
(ou pareça ser)
petrifica
empalha
congela
cadaveriza!

O amor não se dá aos rótulos.
Não se curva às caixas lexicais.
Não suporta os dois pontos ao seu lado direito.

Mas isso nunca foi um problema.
Pois amantes e amados
sabem que o amor
só se despe no silêncio do fato conjugado.


                                                                             Matheus Arcaro



quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

ÁRIAS PEQUENAS PARA BANDOLIM




Hilda Hilst



XI

Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores

Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.


                                                                               Hilda Hilst




terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

ESPERA DE MAIO




Camila Passatuto



A caixa de correio está vazia
Considero teu lembrar,
Teu traço fraco,
Teu cheiro cocaína.

Pesquisei as velhas revistas
Nada trás mera resposta

Esvaziei meu estômago.
Estraguei boa parte da vida,
Mas você - ainda latente -
dos poucos danos, me esquiva.

Nenhum postal de Barbacena
De São Luiz, Barra Bonita

Passou sem sirene, é polícia.
Afastei os dentes da janela
Escaldei a parede com suor

E é só espera
Lá por longe,
Cá dentro
Nem sou mais poeta.

Instalo-me na ânsia
De tua volta, revolta,
Minha poesia cadela.


                                                                            Camila Passatuto




quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

MEU AMIGO




Charles Marlon 



Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,

ajuda-me a negar
este remorso:

eu só queria uma canção
que não morresse

e a hipótese de um poema
que não fosse

o lugar onde me encontro
uma vez mais,

sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.


                                                                         Charles Marlon




JAQUELYNE



Abraão Vitoriano

no retrato
pétala
na palavra
sonho
bênção
orquestra
no meu verso

exclamo



                                                                          Abraão Vitoriano





quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O SOM QUE FAZ QUANDO O TACO CAI


Mário Bortolotto 


Agora você anda triste
e sua tristeza tem um tom dramático
de mulheres do século passado
Você anda triste
como um blues de Billie Holliday
enquanto passa geleia importada na torrada
e passeia nos fins de tarde no seu carro blindado
e sua tristeza a impede de se sentir segura
com tantos fotógrafos e colecionadores de escândalos

Agora você anda triste escolhendo roupas no shopping
e não gosta do que vê no espelho do provador
Daqui eu te vejo triste
perdida numa festa que eu não quis entrar
Sua silhueta de diva lírica quase me enternece
mas eu não pretendo perdoar suas boas intenções
e sei que sua tristeza não te impede de pensar
em viagens
a Tóquio e domingos de páscoa

Mas eu sou um troglodita
com uma herança maldita
tomando chá em copos de whisky
e rezando pro dia amanhecer
então não fica amargurada no transatlântico pra Atenas
não se sinta autorizada a pensar em mim

Não fica triste, baby
é que antes de te conhecer
eu já me esqueci de você






                                                                            Mário Bortolotto




quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

GIRASSOL GIRA MUNDO



Yuri Hícaro


Esse girassol
amarelo Marcelo
que pendula na parede beija-flor

desse sol mistério
do féretro das ruas ao metrô

Um girassol gira mundo
na parede de Raimundo

seja lá onde for...


                                                                             Yuri Hícaro




terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

RECREIO



Amanda Vital


Certas aulas enchem a boca
mais que a hora do recreio

Na sala dos professores
os papeis são invertidos
quando bate o último sino

O mastro do meu mestre
se faz calouro e pupilo
ao meu colegial domínio

Ninguém escapa incólume
do nosso secreto castigo

Ele me agarra pelas transas
e quando tira minha farda
esquece que sou menina

As horas passam depressa
quando estamos na surdina

Cabelo desfeito, mal vestida,
saia amassada, blusa puída,
os dois joelhos sujos de giz

Assim deixo a sala proibida
e guardo na bolsa a maestria
das delícias de ser aprendiz.


                                                                               Amanda Vital





segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

SIGNO



André Ricardo Aguiar


Amor é um modo
de dizer amor: cifra

que não se repete
alicerce azul e antena

onde o som hiberna
no fundo claro-escuro

de cavernas e funis:
amor a tudo golpeia

píncaros e muralhas
e passagens secretas

e revoluções desertas
na praia. Amor é um modo

em que ardo.




                                                                            André Ricardo Aguiar



terça-feira, 19 de janeiro de 2016

DELINEADA



Gabriela Lima


Muitos conhecem
o delineado desse olhar.
Esconde o turvo,
lagos pretos,
oceanos obscuros,
repletos
              de certezas duvidosas
e vazios
de aceitação.

Poucos viram
sem esses traços.
Guardo
             a essência pra raros,
revelo
            pra quem sabe ler
as entrelinhas
bem além
do que se vê.

                     
                                                                           Gabriela Lima





domingo, 17 de janeiro de 2016

MARCELO ADIFA




OAutor

Além, fosse mais um dia
o olhar pela janela vazia
aberta, alma que recebe
e nada tem por oferecer

E nem tudo que por certo
tenha a força das nuvens
é capaz de suplantar Deus
lá fora, vento em choque
onde as brisas se findam

O homem, fortaleza de si
pouco entende das coisas
da natureza e realiza,
só, a única ação
que dele se espera:

mantém a janela aberta




                                                                          Marcelo Adifa



terça-feira, 12 de janeiro de 2016

TRAVESSIA




Aqueles que atravessam a cidade,
atravessam a eternidade.
Os bares, as esquinas e as janelas
não apontam os mortos,
mas há uma afinidade que os une
e revela a solidão dos homens;
a existência dos homens no mundo
e o nome pelo qual a vida é desconhecida.
Aqueles que atravessam a cidade,
atravessam a si mesmos,
aleatoriamente,
como uns loucos sem um mapa à vista.
Se de algum modo existem,
não sabem onde estão e aonde vão.
A cidade é o labirinto dos homens,
o que os move para o encontro atrás da porta
onde a vida se chama travessia.



                                                                          José Saddock de Albuquerque

domingo, 10 de janeiro de 2016

BUSCA



Anchieta Rolim


Ando descalço
Pelo asfalto
O sangue escorre
O canto é triste

Palavras
Vazias

Corro atrás
Talvez, de uma fuga
Do que não sei

Em meus sonhos
Só os pesadelos
Acordam-me do medo
Do que amanhã serei

     
                                                                           Anchieta Rolim



sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

SAARA


Wilson Gorj


Nas dunas do seu corpo
me perco sedento,
em delírios suor e sal.

Oásis é o monte de Vênus
para a sede da carne.
A língua se banha, afinal.



                                                                              Wilson Gorj




terça-feira, 5 de janeiro de 2016

POEMA DE SANGUE


Yuri Hícaro

Pendulando ao vento,
em nível pleno e próspero
de consciência,
sigo prostrado
sob o curso do rio.
Minha casa
é o lar dos perdidos,
o lar dos deslocados, onde Cérberos
regurgita sua virgília
no relinchar assombroso
de novos
dias...

Cores fúnebres que se misturam n'alvorada.


                                                                             Yuri Hícaro