quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

IRRESIDÊNCIA

Poeta Baiano
O que quer a estrada com a boca escancarada?

Com a voracidade de cada átimo, sabe ela
da condição de órfão de cada átomo,
e que o tempo/espaço é residência
de quem está completamente perdido

(a estrada é a única saída e o seu pó o único fim).

                                                                      José Inácio Vieira de Melo


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

FILIAÇÃO

Murilo Mendes

Eu sou da raça do Eterno.
Fui criado no princípio
e desdobrado em muitas gerações
através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
tropeçando em cabeças e chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
do amor que unirá todos os homens:
vinde a mim, órfãos da poesia,
choremos sobre o mundo mutilado.

                                                                           Murilo Mendes





sábado, 22 de novembro de 2014

URBANA

Claudia Roquette-Pinto

Copacabana. Vigésimo andar.
Nuvens de calamidade.
Teu olhar japonês
trai massacres.
Maciez insólita pele
beijo de libélula
um instante.
E o sorriso:
inferno de relance. O neon do cartaz
te faz desigual a cada esquina.
Contra o fundo infinito lilás
nossa última fotografia.
Capaz de qualquer ferida
abraço num gesto longo
toda a avenida.

                                                                        Claudia Roquette-Pinto


terça-feira, 18 de novembro de 2014

IDEÁRIO

Mário Gerson

Não rotule seu poema.
As manhãs tragam os nossos mistérios.
Há muito de solidão nas coisas mais próximas
e a poesia nos chama em qualquer lugar.

Não rotule sua escrita, seus versos.
A vida clama lá fora e sem palavras de ordem.
Carpe Diem dos árcades em nós!

Há muito de alegria nas manhãs de céu claro
e por que rotulamos o ideário
de uma vida serena sempre e após ?!

Há alguém folheando o jornal e lendo
a sua escrita em versos elaborada...
Há alguém sorrindo, ao longe,
sua alegria acumulada.

Não rotule seus poemas...
Eles existem para além de suas penas.

                                                                            Mário Gerson


terça-feira, 11 de novembro de 2014

INFÂNCIA

Yahya Hassan
CINCO FILHOS EM FILA E UM PAI COM PAU
MÚLTIPLOS CHOROS E UMA POÇA DE URINA
ESTENDEM SEMPRE A MÃO
POR ISSO A PREVISIBILIDADE
ESSE SOM QUANDO LHE ALCANÇAM OS GOLPES
A IRMÃ QUE PULA RÁPIDA
DE UM PÉ A OUTRO
A URINA É UMA CATARATA QUE LHE DESCE PELAS PERNAS
PRIMEIRO UMA MÃO ESTENDIDA LOGO A OUTRA
PASSA-SE LONGO TEMPO OS GOLPES CAEM ALEATORIAMENTE
UM GOLPE UM GRITO UM NÚMERO 30 OU 40 ÀS VEZES ATÉ 50
E UM ÚLTIMO PAU NO CU AO SAIR PELA PORTA
ELE PEGA MEU IRMÃO PELOS OMBROS E O ENDIREITA
CONTINUA PEGANDO E CONTANDO
E OLHO PARA O CHÃO ESPERANDO MINHA VEZ
MÃE QUEBRA PRATOS NA ESCADA
AO MESMO TEMPO EM QUE A TV AL JAZEERA TRANSMITE
HIPERATIVAS ESCAVADEIRAS E COLÉRICAS PARTES DO CORPO
A FAIXA DE GAZA AO SOL
QUEIMAM-SE AS BANDEIRAS
SE UM SIONISTA NÃO RECONHECE NOSSA EXISTÊNCIA
SE É QUE EXISTIMOS
QUANDO OFEGAMOS ANGUSTIA E DOR
QUANDO ESTAMOS BOQUIABERTOS BUSCANDO AR OU SENTIDO
NA ESCOLA NÃO NOS DEIXAM FALAR ÁRABE
EM CASA NÃO NOS DEIXAM FALAR DINAMARQUÊS

UM GOLPE UM GRITO UM NÚMERO


                                                             Yahya Hassan



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

OLHO DE LINCE

Waly Salomão
quem fala que sou esquisito hermético
é porque não dou sopa estou sempre elétrico
nada que se aproxima nada me é estranho
                                   fulano sicrano beltrano
seja pedra seja planta seja bicho seja humano
quando quero saber o que ocorre a minha volta
ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
experimento invento tudo nunca mais me iludo
quero crer no que vem por aí beco escuro
me iludo passado presente futuro
                                   urro arre i irru
viro balanço reviro na palma da mão o dado
                                   futuro presente passado
tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo
e fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão
e na sequência de diferentes naipes
                                   quem fala de mim tem paixão


                                                                             Waly Salomão

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

AFASTEM-SE

Poeta Potiguar
Ontem eu dormi
rodeado de serpentes
com olhares ardentes
acordei
com hienas
desatadas
almocei
com coiotes
e urubus ao meu lado
jantei
com um bando
de cachorros vira-latas
e todos esses seres
nojentos, pavorosos e imundos
são melhores companhia pra mim do que vocês
que se dizem homens de bem
políticos honestos
padres e pastores puros
chefes de família respeitáveis
delegados honrados
e traficantes desgraçados
Fiquem longe de mim
porque eu sempre
estarei do outro lado.


                                                                        Anchieta Rolim


terça-feira, 21 de outubro de 2014

CONFIDÊNCIA

Poeta Português 
A confidência tem que ser a mais pura
no olhar de todas as transparências.

Só assim saberei de forma abnegada
abrir as veias e transportar comigo
o segredo que carregas na iminência
de seres ave.


                                                                       Joaquim Monteiro



quinta-feira, 16 de outubro de 2014

PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

João Cabral de Melo Neto

1

Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.

2

Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.

Como não há noite
cessa toda a fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;

como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.

3

Neste papel
pode teu sal
virar cinza;

pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.

(teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera.)

Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.

(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera.)

4

O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; rompendo
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça.)

5

Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.

Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esse lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)

que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido
contra o açúcar do podre.

6

Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.

7

É mineral o papel
onde escreve
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

8

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.

(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
caiu, fruto!

Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:

então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maça
resta uma fome;

onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.


                                                                        João Cabral de Melo Neto





terça-feira, 14 de outubro de 2014

VAI-TE AMIGA

Poeta Potiguar

Vai-te solidão
leva contigo o ódio...
vai com o vento
aos seios nórdicos, de desafetos.

Vai-te solidão
leva contigo o medo
mas deixa a esperança
que ainda vigora, na revolução.

Vai-te solidão
leva contigo o desespero,
e que a distância o queime...
(noite de fogo e dor...noite de apelo)!

Vai-te, amiga...
com devastadora ignorância,
mistura-se às tribulações
de calabouços, com desenvoltura.

Vai-te, oh solidão,
mas volta,
para, na morte,
vigiar minha sepultura.


                                                                             Yuri Hícaro



quarta-feira, 8 de outubro de 2014

ONDE

Poeta Potiguar
Entre a ânsia
e a distância
onde me ocultar?

Entre o medo
e o multiapego
onde me atirar?

Entre a querência
e a clarausência
onde me morrer?

Entre a razão
e tal paixão
onde me cumprir?

                                                                                Zila Mamede


terça-feira, 30 de setembro de 2014

AS SEIS CORDAS

Federico Garcia Lorca
A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que boiam no seu negro
abismo de madeira.

                                                                         Federico Garcia Lorca


domingo, 28 de setembro de 2014

RASGUE-ME

Poeta Potiguar
Não coloque palavras em minha boca.
Coloque a sua língua.
Eu poderei fazer melhor uso dela.

Não elogie a minha roupa,
rasgue as minhas vestes.
Não me acaricie os cabelos,
faça um nó com eles em suas mãos
e deixe-me em movimento,
onde eu possa ver o seu rosto
em cada elevação
que seu quadril
provocar em meu corpo.

Ainda lembro-me de cada dedo seu.
Onde cada um deles encontrava um lugar pra entrar.
Talvez meu corpo tivesse um cartaz escrito:
Seja bem vindo,
fique a vontade;
pois era assim que você sentia-se.
Não pedia permissão para nada;
Meus "não" eram "sim" para você.
E logo sorria como se pensasse:
"Eu sei que você gosta".

A loucura encontrou um jeito de unir nós dois:
Nossos corpos precisam um do outro.
Tua barba pede a pele das minhas coxas
e já sinto tudo alagado...
Meus pensamentos,
meu coração
e as minhas pernas.


                                                                             Fernanda Fernandes

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

POEMA PRA ESTÁTUA DE SANTA LUZIA

Camila Paula

Fazei jus,
justiça.
Tupã!
Iansã!
Jesus!
Na terra que não tem
como dar à luz,
a cegueira não tem tamanho!


                                                                             Camila Paula


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

POEMA FÁCIL

Poeta Baiano

Eu quero o poema fácil,
difícil de ser escrito.
Que seja minha a tortura,
e meu silêncio o que eu grito.

O entendimento imediato
no tempo da epifania.
E o resto, uma chuva branda
sobre o calor da poesia.

Que entendam o que não sinto
em cada verso de prata,
e sintam a imprecisão
que incomoda mas não mata.

Difícil de ser escrito
aquilo que sente a mão:
o plástico da caneta,
a carne do coração.


                                                                               Henrique Wagner


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

CHOVERA CHORO

Gabriela Lima

Afora infinitas possibilidades de der-ramar água dos olhos
Há um choro que se chora lá dentro
Que molha só o coração
é choro seco pra quem vê
porém uma correnteza de um intenso rio
correndo no ser

Tem tristeza que não molha
Tem dor que não deságua

É choro de suspiro preso, coluna reta...
não daqueles que você olha com olhar.
É choro que a vida não deixa chorar...

...e esse choro
só a chuva: pra derramar.

                                                                              Gabriela Lima



sábado, 30 de agosto de 2014

MARCAÇÃO

Poeta Baiano 


Um matuto sem eira nem beira,
labutando com palavras,
vaquejando boiadas de signos
por caatingas labirínticas
numa peleja sem fim.

Invoca o gado invisível
numa toada aflita,
e grafa com pena e tinta
aquilo que a poesia marca,
a ferro e fogo, em sua alma.


                                                                    José Inácio Vieira de Melo



sexta-feira, 29 de agosto de 2014

PARA TI

Mia Couto
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos

Simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida


                                                                               Mia Couto

  


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

MANUAL DE AFOGAMENTO

Priscilla Rosa
À margem de um cais
diminuída a violência das ondas
feita a facilidade:

meus olhos
encheram-se
de sal

não impedi transbordamentos
nem permaneci
tentando morrer para evitar
o curso das águas.

                                                                              Priscilla Rosa





domingo, 17 de agosto de 2014

POEMA DE SANGUE

Yuri Hícaro
Pendulando ao vento,
em nível pleno e próspero
de consciência,
sigo prostrado
sob o curso do rio.
Minha casa
é o lar dos perdidos,
o lar dos deslocados, onde Cérberos
regurgita sua virgília
no relinchar assombroso
de novos
dias...

Cores fúnebres que se misturam n'alvorada.

                                                                              Yuri Hícaro



domingo, 10 de agosto de 2014

MEDO E O MACACO

William S. Burroughs

Coceira irritante e o perfume da morte
no sussurrante vento sul
Cheiro de abismo e nada
o Anjo Vil dos vagabundos uiva pelo apartamento
como um sono cheirando a doença
Sonho matutino de um macaco perdido
Nascido e sufocado por velhas fantasias
Com pétala de rosa em frascos fechados
Medo e o macaco
Gosto amargo de fruta verde ao amanhecer
O ar lácteo e picante da brisa marinha
Carne branca denuncia
teus jeans tão desbotados
Perna sobre sombra do mar
Luz da manhã
no néon celeste de um armazém
No cheiro do vinho barato no bairro dos marujos
Na fonte soluçante do patio da polícia
Na estátua de pedra embolorada
No molequinho assobiando para vira latas.
Vagabundos agarram suas casas imaginárias
Um trem perdido apita vago e abafado
No apartamento noite gosto d'água
Luz da manhã em carne láctea
Coceiras irritante mão fantasma
triste como a morte dos macacos
Teu pai uma estrela cadente
Osso de cristal no ar fino
Céu noturno
dispersão e vazio.


                                                                         William S. Burroughs




sábado, 9 de agosto de 2014

AMAVISSE

Hilda Hilst

Como se te perdesse, assim te quero
como se não te visse (favas douradas
sob um amarelo) assim te apreendo brusco
inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
a mim me fotografo nuns portões de ferro
ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
no dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
ou contornando um círculo de águas
removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.


                                                                   Hilda Hilst  




SINA

Poeta Areia Branquense 

Deixa-me
seguir minha sina
        - de poeta
E, permita-me,
escrever-te, sem demora,
em seu corpo - meu melhor poema.

                                                                          Luiz Luz
                                                                 Pirata e Dono da Lua


domingo, 3 de agosto de 2014

RENAN LACERDA

Poeta Pauferrense
Não há interesso sentido
muito menos ilusões a buscar
Mais os dias que se estreitam
nunca se tornaram mais longos
Permaneceram no óbito.

E aquele silêncio
de pertinência
com muito calor
ancorado em meio a pele, entre seus seios
era o pingo desolado
sublimado de algum sentimento.

E as cordas que pendiam aquele sentido
se enterraram em terras profundas
se escondendo dos artifícios moldados
que o dia encantou qualquer pensamento comum.


                                                                        Renan Lacerda


TONS SOMBRIOS

Poeta Potiguar
Minha loucura passa
por tantas metamorfoses
que me sinto incapaz de a definir.

Deveria ser qualquer coisa
menos o riso travesso das naturezas-mortas,
que perpassando um vento agreste
sujeita nomeadamente às açucenas, em flor,
à violentas deformações
mesmo que o tempo tente esconder as cicatrizes.


                                                                 José Lima Dias Júnior




domingo, 27 de julho de 2014

FASCINANTE MÚSICA


Desequilibro-me luxurioso
aos fios bruxuleantes de teus pelos,
maviosos.
Arquejo brados solitários
à penumbra arterial de apelos,
de um saco embrionário.
Sangram as vísceras em cada canto
à incrível falta estonteante,
do seu estonteante ébrio encanto.
Mas preenche a música...
fantasma de afago necrófilo,
preenchem-me as notas
de uma guitarra escarlate de sorte,
vem quebrando as portas,
vem me trazendo a morte.


                                                                       Yuri Hícaro





quarta-feira, 23 de julho de 2014

OREMOS PELA ANTIPARTÍCULA

Sergio Brandão
O êxodo de crianças imigrantes,
garotas sequestradas na Nigéria;
a Russia mais fria do que antes
anuncia a mais nova miséria.

Parece que o inferno de Dante
e o quase-enigma da antimatéria
estão em conferência muito séria
sobre o que nos vem lá adiante.

Em vossas orações, queridos,
lembrem-se dos supracitados,
dos mortos, dos vivos e dos feridos.

Sei que devem estar mui ocupados,
mas, façamos esses pedidos
e todos seremos mais abençoados.


                                                                       Sergio Brandão


 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

WALT WHITMAN

Whitman
E sei que sou imortal,
sei que minha órbita não pode ser medida pelo compasso do carpinteiro,
sei que não apagarei como espirais de luz que crianças fazem à noite
com graveto aceso.

Sei que sou sublime,
não torturo meu espírito para que se justifique ou seja compreendido,
vejo que a leis elementares nunca se desculpam,
percebo que não ajo com orgulho mais elevado que o nível onde planto
minha casa, afinal.

Existo como sou, isso me basta,
se ninguém mais no mundo está ciente, fico contente,
e se cada um e todos estão cientes, fico contente.

Meu pedestal é encaixado e entalhado em granito.
Dou risada do que você chama de decomposição,
sei da amplidão do tempo.

Sou poeta do corpo,
e sou o poeta da alma.


                                                                       Walt Whitman

domingo, 13 de julho de 2014

INVERNAL

Poeta Potiguar
Agreste
verdume
de encher os olhos
na serra
verde em matizes
da cor mais ver-te
que vestistes.


                                                               Plínio Sanderson Saldanha


sábado, 12 de julho de 2014

LIRA VIII


Poeta Inconfidente
Marília, de que te queixas?
De que te roube Dirceu
o sincero coração?
Não te deu também o seu ?
E tu, Marília, primeiro
não lhe lançaste o grilhão?
                 Todos amam: só Marília
                 desta lei da natureza
                 queria ter isenção?

Em torno das castas pombas,
não rulam ternos pombinhos?
E rulam, Marília, em vão ?
Não se afagam c'os biquinhos?
E a provas de mais ternura
não os arrasta a paixão?
                 Todos amam: só Marília
                 desta lei da natureza
                 queria ter isenção?

Já viste, minha Marília,
avezinhas que não façam
os seus ninhos no verão?
Aquelas com quem se enlaçam,
não vão cantar-lhes defronte
do mole pouso em que estão?
                 Todos amam: só Marília
                 desta lei da natureza
                 queria ter isenção?

Se os peixes, Marília, geram
os bravos mares e rios,
tudo efeitos de amor são.
Amam os brutos ímpios,
a serpente venenosa,
a onça, o tigre, o leão.
                 Todos amam: só Marília
                 desta lei da natureza
                 queria ter isenção?

As grandes deusas do céu
sentem a seta tirana
da amorosa inclinação.
Diana, com ser Diana,
não se abrasa, não suspira
pelo amor de Endimião?
                 Todos amam: só Marília
                 desta lei da natureza
                 queria ter isenção?

Desiste, Marília bela,
de uma queixa sustentada
só na altiva opinião.
Esta chama é inspirada
pelo céu, pois nela assenta
a nossa conservação.
                 Todos amam: só Marília
                 desta lei da natureza
                 queria ter isenção?



                                                       Tomás Antônio Gonzaga







quarta-feira, 9 de julho de 2014

ASSOMBROS

Affonso Romano de Sant'anna
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

                                                       Affonso Romano de Sant'anna



quinta-feira, 3 de julho de 2014

RECOLHIMENTO



1

Não.
Não permitam que te esqueçam.
Por um só instante
tente a lucidez perpétua,
a luz e o caminho evidente.
Que não te consuma
a química,
pereça às leis da física;
naturais.
Deslize à fluidez do tédio,
que não se desfaz.

2

Sim.
Seja autonomia.
Por um só instante
seja a cegueira sorumbática,
a inócua tragédia emblemática.
Que se perca e se drogue
à luz da quimera,
despose a plebeia;
madrigais.
Construa a devassa novidade
e seja a alegoria dos corais.


                                                                          Yuri Hícaro





segunda-feira, 30 de junho de 2014

FUGA


Poeta Paraibano 

Trem desgovernado fora dos trilhos
carregado de amor e pólvora nos ossos
Avião em queda livre para o abraço
cortando as órbitas dos olhares perdidos
Carro acelerado fazendo curvas perigosas
com um motorista embriagado berrando aos quatro cantos
Crianças correndo por imensos campos floridos
com papoulas nos lábios e insensatez na mente
Bombardeios orgásticos derrubando as leis das cidades
e preenchendo o vazio dos tempos cibernéticos
Cílios em slow motion
cortejando novos pulsares sacrossantos
Selvagens suando a cântaros
sinfonias de suspiros e deleites imprevistos
Línguas guerreando num beijo explosivo
Corpos que dançam a pura liberdade


                                                                          IkaRo MaxX


  

domingo, 29 de junho de 2014

CONSOLO NA PRAIA


Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Não tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humor?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-se, de vez, nas águas.
Estas nu na areia, no vento...
Dorme meu filho.


                                                        Carlos Drummond de Andrade





segunda-feira, 23 de junho de 2014

TEMPOS ATRÁS


O silêncio convida-nos
a voltarmos atrás no tempo
e tentarmos compreender um mundo
onde a vida construída a partir do nada
fora decorada com uma moldura horizontal
a uma altura determinada,
de modo que as paredes da injustiça
parecessem menos altas.


                                                              José Lima Dias Júnior



COM AS DEVIDAS DESCULPAS

Poeta Paraibano

Embora eu vou
com teu retrato
de olhos insones
com a tua maneira
de perfumar silêncios
com a tua voz descalça
com teu laço no sapato
com a tua boca
na pronuncia de mim.
Embora eu vou
com as tuas mãos
a coçar minhas costas
com teus cabelos sujos
com tuas pernas
sendo pernas nas minhas.
Embora eu vou
embora com amor.

                                                                     Abraão Vitoriano




sexta-feira, 20 de junho de 2014

INCLINO-ME


Poeta Português

Inclino-me para a noite.
Para o som inextinguível do silêncio.
Para o fruto melancólico
d'uma luz suave, na doce penumbra
de me saber gente.

Penetro a luz com a boca violada.
Com os dentes rilhados de sol
como uma laranja espremida
no ventre da fantasia, tão ao
gosto d'uma língua circular,
onde tudo roda até ao âmago
das papilas que, enumeram
os poros um a um.

Inclino-me, e alguém me diz:
Vê, como o teu corpo é translúcido
na noite de todas as fábulas.
Como a loucura acede ao teu olhar
de violador de chamas reluzentes.
Ao centro nevrálgico, onde não
podes controlar o espasmo, e
te deixas fluir como um rio sedento
de mar, num abraço de morte desmedida
que paralisa o livre pensamento.
Como um fruto descascado pelo
gume do aço; ao qual só umas mãos
acesas iluminam o sumo derramado.


                                                              Joaquim Monteiro




quarta-feira, 18 de junho de 2014

OPERETA

Poeta Baiano


Não sei
se o ameaço
de morte
ou afago
seu corpo leitoso -
a noite, nesse instante,
segue ávida.

Não sei
se o ameaço
de vida
ou vou me embora
na solidão -
a noite, nesse instante,
segue bêbada.

Poderia alerta-lo
eu-não-sei-o-que.
Talvez o mesmo,
a dor, o amor -
a noite, nesse instante,
segue encantada.

A lógica noturna diz:
circulam falsidades
em muitos corações -
a noite, nesse instante,
segue sua incompletude.


                                                          Antonio Nahud



segunda-feira, 16 de junho de 2014

TORPOR I

Anchieta Rolim
Não sei mais
onde termina a pele
e começa o pano

são os meus dedos
ou o cigarro

O copo provocou
a extinção
dos meus lábios

E os pensamentos
são ou não
a realidade.

                                                                 Anchieta Rolim


domingo, 15 de junho de 2014

CASTORIADIS



Um bom pensamento a gente não esquece
Gruda na mente tipo chiclete liguento que liga
Fixa o gosto que se faz presente no desejo que ocupa
uma imagem mastigada com gosto de fruta retornando
Outra fruta do chão deitado para o céu caído no seu telhado
Repouso para a lua pousar sua luz.

                            Sobre o tempo?
                       Não é fácil de-escrever
               Inscrever, escrever o que tem sido
                   Só vendo, ter-sido, só sendo

                         Claudio Castoriadis

quinta-feira, 12 de junho de 2014

A CASA DO POETA

Sérgio Vaz


O endereço do poeta
não encontra-se no mapa
não é à esquerda
nem à direita, a sua casa.

Longe de tudo
e no meio do nada
ele tece seu papel.

Vive do que lhe dão:
sopa de letrinhas
e pedaços de pão.

O dinheiro?

Ele tira do comércio
da sua pequena lojinha
de asas de aluguel.

                                                                  Sérgio Vaz



terça-feira, 10 de junho de 2014

VINÍCIUS QUEIROZ




Lutar como um leão
em um dia desconhecido
montar em dragão
protegendo os amigos

nas provas da vida
missão a cumprir
batalhas diárias
não me deixam dormir

caminhando prossigo
sempre a sorrir
fazendo amigos
me faço existir. 


                                                                 Vinícius Queiroz

domingo, 8 de junho de 2014

ESCÁRNIO PERFUMADO

Cruz e Sousa
Quando no enleio
de receber umas notícias tuas,
vou-me ao correio,
que é lá no fim da mais cruel das ruas,

vendo tão fartas,
d'uma fartura que ninguém colige,
as mãos dos outros, de jornais e cartas
e as minhas, nuas - isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
julgo que tudo me escarnece, apoda,
ri, me apostrofa,

pois fico só e cabisbaixo, inerme,
a noite andar-me na cabeça, em roda,
mais humilhado que um mendigo, um verme...


                                                                      Cruz e Sousa



sábado, 7 de junho de 2014

COMPOSIÇÃO PARA NOITE DE SÁBADO

Poeta Potiguar

Entre as nuvens mais belas, as estrelas
e a metamorfose das quimeras.

A noite de sábado lembra logo uma lua aberta.
Um descampado ou uma praça,
o desapego das coisas tristes e voluntárias.

O dia comum,
de semana, urdido de trabalho sem poesia,
dia de mais valia (parece mais lobotomia).

Mas a espera do fim da tarde,
do sábado,
que precede a noite,
é terapia, é canção, é mantra que arde!

A sintaxe do sábado é arte!


                                                                    Yuri Hícaro





sexta-feira, 6 de junho de 2014

OBJETO DE AMAR

Adélia Prado
De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guarda-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!

Fazei o que puderdes com essa dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.

                                                                         Adélia Prado



terça-feira, 3 de junho de 2014

DIÓGENES DA CUNHA LIMA

Diógenes da Cunha Lima
Quantos rios
são esse rio?
Quantas formas
espiadas pelo olho
azul do céu,
vitral toldado
por nuvens,
brasa cromo
do sol posto?


                                                                Diógenes da Cunha Lima


Poeta Potiguar

PIETRO ARETINO

Pietro Aretino

Tens-me o pau na boca, o cu me vês;
vejo-te o cu tal como ele foi feito.
Dirás que do juízo sou suspeito
porque nos pés eu tenho as mãos, em vez.

Mas se em tal modo de foder tu crês,
confia em mim, assim não será feito,
porque eu na foda bem melhor me ajeito
se meu peito do teu sente a nudez.

Ao pé da letra quero-vos foder
o cu, comadre, em fúria tão daninha,
com dedo, com caralho e com mexer,

que vosso gozo nunca se definha.
Pois não sei que é dulcíssimo prazer
provar deusas, princesas ou rainhas?

                      Mas direis, escarninha,
que embora eu seja em tal mister sublime
o ter pouco caralho me deprime.


                                                                         Pietro Aretino