sábado, 19 de dezembro de 2015

VISÃO INFANTIL ATRAVÉS DE UM VITRAL RACHADO



Demetrios Galvão


i

o espelho punk
com seu moicano e
raízes bailarinas
equilibra-se no ar
mirando com seu olho único
a flor moinho de vento.

a borboleta-cara-de-morcego
com asas de arco-íris quebrado
vomita relâmpagos
na tempestade carnívora
do sol.

ii

fruto estrangeiro
inflamado de dentes
em suas pétalas oculares.
sacia a fome clorofilar
de suas feridas verdes.

iii

nas estrias do algodão atmosférico
um dragão invertebrado
refaz desenhos de basquiat.

iv

suruba de cores na calda-radar
do peixe metamorfo.
imagens de proveta
no reflexo insípido de um vitral  rachado.

v

na órbita da moldura
asteroides fanáticos,
rabiscos de nanquim
num piquenique insólito
(de espinhos de aço.)


                                                                           Demetrios Galvão







quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

INGRID CARRAFA



Ingrid Carrafa

Escovou os dentes até esfolar a língua
E não conseguiu tirar o gosto de sarjeta da boca
Promessas de fim de ano
vodca com coca-cola
Cantadas desgraçadas
O som está alto
ela também
sujeito nojento pergunta seu nome e faz massagem no pau
Promessas de fim de ano
perfume de mulher bem na hora do tango
Chora enquanto escreve no guardanapo
Promessas de fim de ano usadas pra limpar o rabo sujo de merda
o papel higiênico acabou
O bar está fechando
não caiu em si
Continua escrevendo promessas de fim de ano
Foder sem beijar
pra não prostituir a alma
Barganha com o diabo
Dar descarga no coração para afastar as moscas


                                                                             Ingrid Carrafa





terça-feira, 1 de dezembro de 2015

MÁRIO DA SILVEIRA



Mário da Silveira


Muitas vezes pensei que mais te amando,
Mais te querendo, só eu poderia,
Colher na seara amarga do meu dia
Um fruto doce, um lenitivo brando.

Mas hoje vejo que vivi sonhando
Um grande bem que, enfim, não existia,
Porque, se mais te via, mais eu via
Tua alma da minha alma se afastando.

Eu, que nasci sentimental e poeta,
Eu te sentia humana entre os meus braços,
Como as demais, efêmera e incompleta.

Mas, que loucura! Mas, que ledo engano!
Vendo-te imaterial pelos espaços,
Sinto-me triste, muito mais humano!

                                                                          Mário da Silveira



segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O MEU RESGATE



Yuri Hícaro


Vou abandonar esta fumaça,
estou só
e assim eu quero,
toda e qualquer desgraça
que se expande ao meu redor;
assim figura o meu mistério.
Minha dimensão é transitiva...

sempre
rejeitado...
                                       pelas
                                    crianças,
pelas mães das mulheres que
nunca tive;
a ser resgatado numa missiva.
Sinto a biogênese da mentira
que em mim
                                     fantasia.


                                                                                 Yuri Hícaro  






sexta-feira, 27 de novembro de 2015

KAUAN ALMEIDA



Kauan Almeida



Meu amor navega
Por onde ninguém jamais navegou
Por vezes corre e outras anda
Mas também é estático o meu amor
Nele não cabe horas
Espaço o confunde com pressão
É fadado este amor
A navegar nos mares da ilusão
Jamais afunda
Jamais se rende, ainda que fuja
Covarde é o tempo
Que o coloca nas mãos das velas.
As ruas atravessam
Pontes passam velozes
As pedras se roem em vestígios
Meu amor é carnívoro
É marinho e satânico. É notívago o meu amor.
Está sempre à espreita da captura
Se lava na indiferença
Se cria nos lugares onde a vida não habita.
Ele, o meu amor, é de sal e luxúria
Vaidade e orgulho.
Anda solto na bússola para encontrar o que busca.


                                                                                Kauan Almeida








sábado, 21 de novembro de 2015

PRISCILA MERIZZIO




Priscila Merizzio



dormir o corpo
adiposo no edredom
florido
ocultar a epilepsia
imaginária
ouvindo Joy Division
fugir do sono derradeiro
que se refaz nas
barbas noturnas
morder angústias
picando na aorta
água marinha
faisão mastiga o
boldo das horas
sonho tapa
a lucidez
dos risos
sombra presa em
trapiches podres
amar o inexistente
vazio preenchido com vazio
múmia, pele sem órgãos
casca de cobra na floresta
o creme da vida é luz
atravessando vitrais
de igrejas iluminando uma
das faces
ajoelha-se o homem
implorando a melissa das manhãs
trabalho, matrimônio
atormenta-se como os santos
nímia escuridão
onde viveu
canonizando sombras




                                                                            Priscila Merizzio




sexta-feira, 30 de outubro de 2015

MARACATU



Nina Rizzi


Sou grande, todo o largo.
Imensa pra qualquer canto.

Danço
como setenta pombas-gira.

Na bandeja,
a cabeça de João Batista.


                                                                              Nina Rizzi




segunda-feira, 19 de outubro de 2015

BEATRIZ



Fernanda Fatureto 


De todo amor rendido ao fim
Metafísica obscura do adeus
Seria possível olhar em seus olhos
Novamente ?
Tudo está perdido -
Sabemos
E por saber cantamos idílica noite
O que nos foi profano:
Todo começo é pureza
ainda que haja o corpo
O soluço e o choro.
Névoa da partida
Do canto estarei atenta
Não mais musas a me inspirar o sentimento sagrado.
Percorre o céu,
Eu ainda estarei na terra.
Adentras o inferno da minha alma,
Turva.


                                                                            Fernanda Fatureto





sábado, 17 de outubro de 2015

SOBRE



Lívio Oliveira


Arde ainda o tempo
em que não te vejo
guardando dor e incenso
das horas em que me lancei
sobre os teus peitos duros
e língua acesa em sais

Todo o ar que engulo
de tua boca ausente
mistura venenos
ao sangue impuro
que se expande
em tecidos e cortinas
e nas tuas coxas
sob o oculto da noite e suores.

Teimo em aguardar
mais dias de sonho
de sonos vis
no travesseiro
das tuas costas
tatuadas de centauros.


                                                                                Lívio Oliveira


sexta-feira, 9 de outubro de 2015

INFARTO



Diego "Urso" Moraes


O dono do estabelecimento
baixou
o volume de uma canção do
Belchior
e um cara sofreu um infarto
dentro do bar
a família do cara veio pegar o
corpo
mulher, mãe e filhos chorando
não aguentei a situação e fui
ao banheiro
dar um tiro numa peteca de pó
e voltei para minha mesa
chorando baixinho
olhei para a cadeira onde o
cara estava sentado e vi
um monte de papeis
esvoaçando
como se o espírito dele
brigasse contra uma
tempestade
aí aumentaram o Belchior, as
pessoas começaram a gargalhar
e os papeis continuavam a
voar
como se fosse uma fonte de
poesia.


                                                                           Diego Moraes





domingo, 4 de outubro de 2015

NIL KREMER


Nil Kremer

se rubra te guardo em meu ventre
sente
já é erupção em minha epiderme
minha lava lavra teu vulcão
recebo
não nego
entrego minha joia
flor em plena primavera
não espere criar raiz
te quis na medida do agora
e quando for
por maior que seja a demora
aqui permanecerá
presente


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

TARDES QUENTES



Gustavo Luz

Minha mãe
que nasceu em Caicó
correra das secas e
embaixo de oiticicas
brincara sua infância
olhava com muita
             desconfiança as
             descobertas vindas
             pela TV

No são-joão
tudo era
adivinhações
nas calçadas
as fogueiras
              e ela sempre falava
              nas tardes quentes
              dos familiares que
insistiam em viverem da terra
              enquanto
              se passava as roupas
              em ferros de brasa.


                                                                           Gustavo Luz




sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O TEU DEMÔNIO



Iracema Macedo


O teu demônio me segue
anos a fio
ele tece flores para mim
divide meu corpo em partes
Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
eu aparo suas bordas seu rabo seus chifres
O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado
O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre
O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dele a galope
eu vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda
Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma.


                                                                        Iracema Macedo



quarta-feira, 23 de setembro de 2015

SOFRO DE PERDAS E ACHADOS



Clóvis Neto


Sofro de perdas e achados.

Todos os dias, nos momentos mais difusos,
Inesperados,
Perco um pouco de minha alma.
Atrapalhado, tento erguer a mão, tímido,
Para perguntar: "por que agora?"

Mas nunca consigo sequer mover-me
Diante de tal afronta a um ser alheio.

Então sempre lembro que sofro.
Sim, sofro.
De perdas e achados.

E logo em um outro momento, encontro um pouco d'alma,
Lívida, muito viva,
Que me faz a tudo entender.
Um olhar desnudo e mudo.

Depois a vida começa a fazer algum sentido,
Mostrando-se toda, completa,
Absoluta.

Pois sofro, é verdade que sofro.
De perdas e achados.

Mas sofro mesmo
é de ser humano.


                                                                             Clóvis Neto





terça-feira, 22 de setembro de 2015

DEPENDÊNCIA




Ruy Rocha


Dependo de um político
Uso uma bengala
Que me deixa paralítico


                                                                               Ruy Rocha



segunda-feira, 21 de setembro de 2015

JARDIM DE PIRANHAS

                                                                                                           

                                                                                                          pro Piranhas fluir feliz



Nonato Gurgel



todo rio é pre-
texto de olho fixo
que o fite e flua
na busca de tê-lo

na lição do rio
cursa-se seu curso
nos discursos hídricos
nas memórias líquidas

nada lírica
épica perene


                                                                             Nonato Gurgel




sexta-feira, 18 de setembro de 2015

IÇA



Carlos Gurgel


iça
sonhos e moinhos
sobre
o deserto do nada

iça
teus sonos e vexames
sobre
a volúpia de um mar torto

iça
tudo que um dia partiu
como obra
de tuas sobras e sombras

e sobrevoas
como faminto condor
todos seus pulsos e ruínas.



                                                                              Carlos Gurgel




terça-feira, 15 de setembro de 2015

DE QUE VALEM OS ELOGIOS DOS AFOITOS



Florence Dravet


De que valem os elogios dos afoitos, dos
apressados e dos apaixonados? Certos sorri-
sos em bocas de mel trazem aos olhos o des-
conforto dos venenos. Gosto dos que atentam
para a profundidade subjacente dos mapas
da pele. Dos que gozam a vida devagar e não
se abalam com o tambor  ao longe. Dos que
correm o risco da sabedoria em tempos de
loucura. Dos verdadeiros loucos.

Diante do precipício da nossa incoerência, às
vezes, a horizontalidade do enfrentamento aju-
da a vencer a vertigem. Outras vezes, apela-
mos ao vertical dentro do vertical.

São poucos nossos instantes acordados.


                                                                            Florence Dravet




segunda-feira, 14 de setembro de 2015

APARTHEID SONETO







                                                                      Avelino de Araújo




sábado, 12 de setembro de 2015

A MÁQUINA DE AVESSAR OS DIAS DA MINHA AVÓ



Theo G. Alves


minha avó
inventou uma máquina
de avessar os dias:

antes de sua morte
pôs-se a engendrar
memórias
- gente com asas
- estranhas histórias do tempo
- cães de nomes improváveis
e lindos

eliminou
de seus dias as
pessoas reais -
que pode
haver de mais tedioso
que gente
concreta
ou tijolos de barro e pedras?

minha avó
com suas máquina de
avessar os dias
acordava
a casa no meio da noite
ironizava
a invenção do vento
esquecia
os nomes inúteis das filhas
recriava
o absurdo nãolinear do tempo.

era uma máquina
de costurar avessos -
retalhos
coloridos do tempo:

guardeia para mim
- minha avó
e sua máquina de aventuras -
para usá-la
quando for
meu tempo.


                                                                              Theo G. Alves




quarta-feira, 9 de setembro de 2015

PAISAGEM


Racine Santos


De fogo um gavião sobre a caatinga
Sentinela de antigos carrascais
E sobre um chão desfolhado um ouro pinga:
O silêncio tem pontas de punhais

O vento não tem voz. E os animais
Deixam rastros de cinza na paisagem
Inculta e quebradiça nos pragais
Onde as aves se despem da plumagem.

Mas essa paz de praça abandonada
Por tropéis de repente é assaltada
Espelhando no campo sons de lida.

São galopes de antigos cangaceiros
Que lutaram e tombaram em seus terreiros
E que voltam sem peias e sem brida.


                                                                             Racine Santos




terça-feira, 8 de setembro de 2015

POEMA DA INSÔNIA



que? você está insone
e não está radiante ?
quer então descontinuar-se
inanimar-se
dormir?

e a lua
a lua coração do céu
não lhe transfunde
prazer de existir ?

os diademas de edson
nuançando as ruas
não lhe infundem desejo
de canoniza-lo, a edson ?

Como não apaixonar-se desses vagalumes
vindos das curvas do trairi
para o agora dos seus olhos ?

E esses himens de ouro
imersos em musgos públicos
essas confissões segregadas
esses ciúmes que se amam?

voando de jerusalém
vem vindo um passarinho
e com o mundo sobre as asas
penetra sua sala

Como não enternecer-se desse passarinho ?
Como não aconchegar-se nessa insônia
impregnada de você?



                                                                    Jaumir Andrade





segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O TEMPO CONTRA O TEMPO



quando vier o esquecimento
(demolição do momento),
a quem doar a canção?

quando a imagem
(nuvemsemelhança)
acampar o seu rebanho na lhanura da tarde

e o espaço ágil
sequestrado
for menos que lembrança
(sem mais o engano poderoso da Forma),

quem sustentará
o muro silencioso e frágil da
solidão?


                                                                Miguel Cirilo




sábado, 5 de setembro de 2015

O CORPO BRANCO NO CHÃO



o corpo branco no chão
não faz esforço.
a luz circula na intimidade.
a nudez é antiga.
o quarto também.
as palavras estão se arrumando
para um novo poema.
as coisas, postas em sossego
repousam de qualquer modo.
anônima é a presença da noite.
os chinelos esperam.
eles não sabem, mas esperam.
- pode alguém exigir mais para dormir?


                                                         Miguel Cirilo





quinta-feira, 3 de setembro de 2015

TENDÊNCIA


3

Sofro um quadrado contorno
- moldura em torno de mim
do que já fui sem retorno:
- quem ao retrato deu fim ?

pergunto porque não o vi,
que por tê-lo não me empenho:
prefiro o vago desenho
- menino, que não perdi.

por ser no tempo, o retrato
tem muito vidro partido:
nele, nada é permitido
mais do que foi: é exato
demais, para não ferir.

o desenho, não demora.
escolhe, pode fingir.

sim, mais do que se pressente,
irremediavelmente
o retrato é o morto em mim:
foi bom que lhe dessem fim.


                                                            Miguel Cirilo




quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A PORTA


Deífilo Gurgel


Deste lado da porta é noite, já.
Os homens adormecem seus cuidados.
Pelo campos desertos, os arados
pesam, negros e inúteis, ao luar.

Deste lado da porta ruge o mar
dentro da noite. Os pássaros cansados
pousaram nos meus olhos tresnoitados
e dormem ao relento, sem cuidar

que do outro lado desta porta é dia
e que somente um sopro bastaria
para esta porta abrir-se do outro lado.

Então, de súbito, amanheceria
e o que em sonho repousa, deste lado,
do outro lado da porta acordaria.



                                                                              Deífilo Gurgel




segunda-feira, 31 de agosto de 2015

ESTUDO EM R


Paulo de Tarso Correia de Melo


Quando Tereza entra de blusa cor de rosa
no restaurante Raro Sabor
a turma para e mira a aura radiosa
daquela cor.

É cor de tarde esplendorosa
véspera da hora do sol pôr,
cantar de ária, maravilhosa
coloratura, aquela cor.

Direciona risos e olhares,
tardos penares, pensar de amor,
esparge em tudo florais odores
Tereza rosa, de raro olor.

A terra é um prado de malmequeres
e bem-me-queres, desfolham flor
de pretenderes e desejares
suspiros breves, morno calor.

Nestes noturnos, árduos misteres
de seduzires, fero labor,
parcos trabalhos, destras mulheres,
rouges e rímel, tintura e cor,

o coração, rosa vestido,
guarda escondido ligeira dor:
o rotineiro e o repetido -
sabor amargo, raro sabor.


                                                                     Paulo de Tarso Correia de Malo




sábado, 29 de agosto de 2015

AD PERPETUAM REI MEMORIAM


Jarbas Martins

I

Questi sono
i miei fiume
                              -  Ungaretti

Sob um céu de ferrugens
                                        e salitre
nutre o Potengy
                          sua podre geografia
da Ponte de Igapó
                     sucata de extintas viagens
           escultura fantasma
que une a cidade
                         ao manguezal do tédio
divisa seus limites
e ante a ofensa azul do mar
                                escondem-se os Refoles
- refúgio de piratas
                                e dragas sonolentas
preso entre a anquilose
                      e a baixa voltagem dos crepúsculos
                 contempla
a colisão do trem contra a paisagem

suga os alicerces
                                de velhos casarões
que armazenam
                          como um troféu
                          a lembrança
do último domingo de regatas

o apito estrangulado do cargueiro
                agrava a paz
                                            da tarde portuária
e denuncia o peixe
sob as locas
à margem de gamboas
         e caminhos de caranguejos
os mortos do Cemitério dos Ingleses
         bebem as águas residuais
                                                do rio.


II

Stamani mi sono distesco
in un'urna d'acqua
e come una reliquia
ho riposato
                                        -  Ungaretti

então este rio Potengy
         talvez não seja mais que uma memória
azulcicatrizações de gordas sombras
        e águas semoventes

uma espada de mercúrio
          do flanco esquerdo da Ponte de Igapó
à Pedra do Rosário
        atravessará o coração do rio
mas isto se dará
entre a 25ª hora
e a Hora Oficial da Abolição dos Mangues

uma garça de petróleo
           estancará seu voo
sob a mira de um canhão de raio laser

deste porto de miasmas zarpará
o último cargueiro
em busca de um país
             onde os peixes cegos riem
             aonde os peixes jamais irão



                                                                     Jarbas Martins






sexta-feira, 28 de agosto de 2015

RIOGRANDE



RIO GRANDE          DA MORTE
RUI GRANDE          SEM SORTE
RIO GRANDE          SEM FORTE
RIO GRANDE          DO NORTE

RIO PEQUENO        DO NORTE
RIO FINITO              DO CORTE
RIO SECO                  DE SORTE
RIO GRANDE          DO NORTE

RIO SEM CAIS        SEM PORTO
RIO VOCÊ JÁ           FOI MORTO
RIO DE LEITO                 TORTO

RIO CHORANDO    DE FOME
RIO TRISTE             SEM FOME
RIO CANSADO       QUE SOME


                                                                      Bosco Lopes

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

XXIII



                                                                      Myrian Coeli



Neste engano que é o tempo
Eu caminho. Eu me colho.
Meu trovar, travo, recolho.
Ferida viva  eu me aguento.

Neste desdouro eu me encontro
E teço minha parábola
Em tear de silêncio e sôbola
Que, tecendo em nu, confronto

Com que sem ser, poderia.
Assim caminho, assim canto.
Amor, pena que descanto
Que amante só ousaria.



                                                                         Myrian Coeli




terça-feira, 25 de agosto de 2015

RÉQUIEM DAS SETE CASUALIDADES


Myrian Coeli

Sete espadas me abriram
- sete flores rebentaram.
Sete espinhos se encravaram
nestas carnes descarnadas.
Sete dados, sete sortes,
contra mim foram jogados.
Na solidão, sete abismos
esperanças enterraram.
Em meus braços sete anjos
de angústia suspiraram
e pelo avesso os meus sonhos
em minha alma estrangularam.
Sete dores me tremeram
e meu peito atormentaram
sob essa túnica branca
em que vivo condenado.
Sete escárnios me lançaram,
sete cuspes me insultaram
neste rosto que de herança
foi de nada agraciado.

Sete escritas proscritas
nos apelos da linguagem;
sete bordéis de palavras
as ideias deturparam.
Sete ilhas represadas,
de sete sonhos negados
em sete oceanos de sal,
de silêncio dominadas.

Sete terras e mais amores
- possessões de minha ânsia,
gado e canto, mais a flauta,
que no ar jazem desfeitos
- o que foi minha abastança.
Sete sede inflamadas
em sete rios sem águas.
Sete pássaros me arrancando
para nuvens de cobalto.
Sete espelhos deformados
onde via minhas graças.

Sete bronzes estão tocando
pelo sono que me cobre.
Sete altares luzem velas
pela morte que memora.
Sete lágrimas choradas
pelas coisas que perdi,
já no íntimo enterradas.

Sete pesares tenho
são suspiros que me mexem
em sete faces, sete atos,
tantas vezes vezes sete.

Sete alegorias mortas
que formavam meu cenário
- que a vida não comporta
sete mortes tão incautas.
Sete espadas alanceiam.
Sete sangues já empostas.
Sete mortes tão estanques
neste espaço onde esmago
tortos dias estranhados
- sete feras me devoram.

Sete altares luzem velas
pelas mortes que me matam.

Sete espadas me mataram.


                                                                             Myrian Coeli





segunda-feira, 24 de agosto de 2015

PROCURA-SE UMA PROSTITUTA


Moacy Cirne


PROCURA-SE UMA PROSTITUTA
QUE                     SAIBA E QUEIRA
MANDAR                         À MERDA
ESTE                                 P O E M A
                                                       PAGA-SE BEM


                                                                              Moacy Cirne




domingo, 23 de agosto de 2015

INTUSIASMO


Renato Caldas

Teus óio esverdeado
Só parece dois sordado
Do exerço nacioná...
Ou dois cabo, dois sargente,
Dois furrié, dois tenente,
Dois majó, dois generá.

São dois fuzi, dois canhão,
Duas granadas de mão,
Duas combré, dois punhá...
Tenho certeza qui morro
Mas pá riba deles corro
Eu quero é me estraçaiá.

São dois espinho reimoso,
São dois menino teimoso,
São dois pecado mortá!
(Deus me perdôe a lembrança)
Duas óstia de esperança
Pru os meus oio acumungá.


                                                                          Renato Caldas




sábado, 22 de agosto de 2015

AUTOBIOGRAFIA


Walflan de Queiroz

Nasci sob o signo de São Bento José Labre.
Pedi esmola na porta de Notre Dame,
E fui encontrado morto numa rua de Madri.
O primeiro hino foi meu, o primeiro canto,
Que comoveu a alma de Francesca de Rímini.
Fui monge, amei a virgem.
Fui marinheiro, estive no Oriente.
Mais tarde, pertenci ao grupo dos poetas malditos,
E escrevi o meu último poema para uma menina espanhola.


                                                                       Walflan de Queiroz




sexta-feira, 21 de agosto de 2015

ADIVINHAÇÃO


Luís Carlos Guimarães


Quem usa o bisturi da palavra
(só o seu metal não azinhavra)

e, mágico, pratica uma incisão
de tanta destreza e precisão

que, sendo cego, só pelo tato,
no corte certo ao nervo exato

(nem uma gota de sangue medra)
extermina a cegueira da pedra ?



                                                                        Luís Carlos Guimarães




quarta-feira, 19 de agosto de 2015

RÉQUIEM PARA UMA CIDADE QUE VAI MORRER AFOGADA


                                                                                                         Para Pepe Escobar,
                                                                                                         autor de uma reportagem
                                                                                                         que foi guia do poema
                                                                                                         nos rumos de Veneza

Luis Carlos Guimarães

I

Para chegar ao corpo líquido
                   de tuas artérias de água ,
        ao teu coração salino,
ao teu pulmão que respira
                                oxigênio de mangue e paul,
deixo para trás o Continente
e desta ponte que salta sobre o mar
                     como serpente de concreto,
avisto o contorno de teus palácios,
                              pontes, casas, torres e igrejas
alicerçados sobre um chão de óleo escuro e oscilante
     e quase decepados pelo alfange do horizonte.
        Esta ponte sob um céu de zinco,
acachapante céu de zinco
        quase a fundir-se ao mar negro,
              parado mar de pântano
  imóvel e compacto,
sem um calafrio na pele de pergaminho enrijecido,
                                 sem um arrepio de febre,
nem o sopro sequer de uma brisa doente
para estremecer-lhe o dorso cor de ferrugem.
             Há quantos séculos, Veneza,
celebram em tua intenção ofícios religiosos,
missas de Sétimo Dia e de Ação de Graças,
enquanto morres e ressuscitas
na metáfora de um fim sempre adiado.
   Enquanto afundas milímetro a milímetro,
as paredes de calcário de teu casario
corroídas lenta e silenciosamente
                          pelas águas pestilentas de teus canais.
Veneza romântica, bizantina, gótica, renascentista,
(depois o barroco acrescentaria
                             o desregramento da sua fantasia)
com tuas esculturas
               e afrescos derrotados pelos ácidos,
asfixiada e poluída pelas águas contaminadas
                 das fábricas da laguna
                      oxidando teus fundamentos.

II

A Veneza das igrejas de San Trovaso,
                             Gesuati e San Sebastiano.
Veneza de Tintoretto, Tiepolo e Veronese.
Do Gran Canal, a rua que ondula longamente
              e se reparte no labirinto
                         dos desvios e becos dos 177 canais.
Adornada com colunas de mármore
                 da liquidação do Império Romano.
Com cavalos de bronze
                                 do hipódromo de Bizâncio.
A antiga e sábia Rainha do Mar
                       do soneto de Alfieri.
Vermelha e negra,
                     de veludo e cetim,
                a cidade pintada de Musset.
O antro da besta selvagem para Henry James.
       O dédalo abjeto de Thomas Mann:
                     putrefato símbolo sexual,
        apelo obscuro do amor e da morte.
Nas noites do Gran Canal
             Byron nadava com uma lanterna
                        na mão para não perder o rumo das estrelas.
            Veneza da Piazzetta onde São Teodoro
                                    guarda no olhar o fogo da virgília.
Da aurora e dos címbalos flutuando
       entre domos, fontes, estátuas, castelos e praças.
Dos delírios carnais de Tintoretto
                             despencando das alturas.
Da cor do céu de Tiepolo que Deus
          tenta imitar nos crepúsculos venezianos.
No Ancoradouro dos Incuráveis
                          Nietzsche contraiu gênio
                                  e sífilis de uma rameira.
Câmara mortuária de Wagner
             que expirou contemplando o Gran Canal.
Na Ponte da Humildade
      Ezra Pound tomava sol esperando a morte.
D'Annunzio explorou os porões  de tua alma,
onde tudo era vapor, fadiga, consumação e cinzas
                 navegando na água negra
                     de uma gigantesca clepsidra.
                Veneza que inventou a luz
                          entre a hipnose da laguna
                                      e os reflexos do céu.
                Veneza fêmea,
       oferecendo o corpo nu
   no leito aquático em abandonos sem-fim.
Cidade a ser exorcizada
           pelas feridas da psique e da alma.
Por que não recolhes as máscaras do carnaval?
                  Quantas paixões dissimulas
    com essas dálias funerárias
                    nos altares das igrejas?
Será miragem o espectro
             de Veneza incendiada
                    no horizonte em chamas?

III

Vultos desaparecem nos labirintos.
            Acima do eco dos carrilhões
               a lua espelha no mar emparedado
                                   o mármore das igrejas.
Se fosse no céu de inverno
(tampa comprimida sobre a cidade)
tuas torres como punhais ameaçariam a lua,
           recurva, lívida e demente lua
                       vestida de trapos de nuvens.
No céu de verão as estrelas,
                 os olhos acesos da noite.
Apenas o ruído de uma barcaça recalcitrante
apinhada de turistas que retornam aos hotéis.
Na Praça de São Marcos sem pombos
                   rodam a sequencia de um filme fantástico:
                  efeitos especiais de iluminação
                 criam o simulacro de estação do inferno,
                de cemitério lunar suspenso
               nos ares de um céu letal
              cingido por um arco-íris.
             (O dia devolverá os pombos
            que comerão migalhas nas minhas mãos.)
           Meus olhos distantes acompanham
             a gôndola vazia e seu gondoleiro solitário
              que passam debaixo da Ponte dos Suspiros.
               A lamentar o desterro da noite
                badaladas voam com os sinos
                 em timbres graves e agudos
                  por cima de todos os tetos.
Sinos para anunciar a viagem da noite
            nos canais violetas,
agachada entre muros cada vez mais escarlates.
Sob as cúpulas o silêncio
                    do caos fluindo
de trevas por baixo dos abismos.
        Suspiros velejam além das águas.

IV

Veneza é um sonho de pedra edificado sobre a água.
        Geografia irreal de um delírio arquitetônico.
Cidade Narciso em permanente êxtase,
                                 siderada e enfeitiçada
                                    pela imagem refletida nos canais,
com a revelação da face resplandecente,
                                      dos adereços e joias,
                                         das vestes de ouro e prata,
mas também das entranhas de lama e lodo,
                       do odor de latrina e decomposição
                           das passagens clandestinas
                                e dos meandros dos esgotos.
Fechada como concha,
              num torpor físico,
                   num langor da alma,
    num esmorecimento que dura séculos
        agonizas enferma de tua própria beleza.
Violada a cada instantes pelos flashes
                             das máquinas fotográficas.
Nos cartões-postais mostras ao mundo
                               a intimidade da tua nudez
       de Grande Cortesã dos Sete Pecados Capitais.

      Suntuosa sinfonia fúnebre.
       Calidoscópio alucinado.
         Quando chegar a tua hora,
                 subirás aos céus
                     ou descerás às profundezas do mar?


                                                                     Luis Carlos Guimarães









segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A RIMBAUD, O AMÁLGAMA

Sanderson Negreiros 

Houve morte do onde eu nasci
houve pranto onde estive incomunicável
houve silêncio onde estive impassível
e houve além Rimbaud. Ele é
e é a matéria e uma certa mulher
um certo bêbado e um certo metafísico
um certo santo e um certo dionisíaco.
Rimbaud, o teu limite de imagem
é a circunstância de te deparares
com o tempo vazio no retrato de Charleville.
Rimbaudiei-te, sonhos de remanso e sordidez,
e me permaneci populoso na poesia.


                                                                          Sanderson Negreiros



domingo, 16 de agosto de 2015

PARIS

José Bezerra Gomes

          Uma

          maça

      no caminho


                                                                        José Bezerra Gomes



sábado, 15 de agosto de 2015

BARRO VERMELHO NINHO DE POESIA

Palmyra Wanderley


Meu Deus, como ele é triste e desolado!
Parece o "Só" de Antônio Nobre, coitado!
Dizem que nos ramos das árvores
Prediletas
Fazem versos os pássaros poetas.
E a levada, tão clara e tão bonita,
Começa a recitar.
E murmura também alguma coisa
De um romance que agrada,
De José de Alencar.
Não há naqueles sítios submersos,
Na sombra de arvoredos tão fechados,
Um passarinho que não faça versos.
É que ele assim tão só, tão escondido,
Tão feito para o sonho que repousa,
Houve um tempo em que foi o Hôrto preferido
Da grande poetisa Auta de Sousa.
Ela ia ensinar aos pássaros do verão
A poesia terna, doce, mística, sonora
E tão triste, do coração.
E corre, como certo,
Que eles levavam à mestra de presente
Ramos de flor no bico,
Apanhados na água corrente,
Ou colhidos na mata, ali, por perto,
Se algum dos passarinhos se feria
No espinho da roseira,
Ou na arma cruel do caçador,
Ela lhe servia de enfermeira.
E quando ele voava, já curado,
Pela mata sombria, ou pelo céu,
Em busca de encontrar da companheira
O carinho, o conforto.
Cantava, muito alto, na ingazeira:
- Venham ver como é bondosa a poetisa do "Hôrto"!

Anos depois, a morte tão temida,
Num dia azul, sem véu,
Levou a poetisa, tão querida,
Para fazer versos, lá, no Céu.

Dizem que nesse dia de tristeza
Para toda a cidade,
Enquanto lá no céu havia festas
Pela sua chegada,
Todos os passarinhos conhecidos
Choravam de saudade.

Os tempos passam, voltam os desenganos,
Há em todo prazer qualquer tristeza;
Barro Vermelho guarda em seus arcanos
Muita coisa dos tempos do bruxedo...
E ouvi muito contar e se espalhou,
Que foi ali à sombra do arvoredo,
Onde a bela do bosque adormeceu cem anos
E a poesia se santificou.



                                                                       Palmyra Wanderley





sexta-feira, 14 de agosto de 2015

OS CEGOS

Jorge Fernandes


Ele segura o ombro dela
e amparados caminhavam.

Ele via por ela
Ela via pra ele.

Ele pedia...
Ela via...

Ela era mulher dele
porque era feia

Ele era o homem dela
porque era cego...

Eles dois eram um só...


                                                                           Jorge Fernandes




quinta-feira, 13 de agosto de 2015

TERRA MATER

Ferreira Itajubá


Natal é um vale branco entre coqueiros:
logo que desce a luz das alvoradas,
vão barra afora as velas das jangadas,
cessam no rio as trovas dos barqueiros.

E à tarde, quando os rudes jangadeiros
voltam da pesca às praias alongadas,
começa à sombra fresca das latadas
a palestra amorosa dos solteiros.

Quantas belezas mil Natal encerra!
Deu-lhe a natureza um mar esmeraldino,
despiu-lhe o morro, aveludou-lhe a serra...

Terra de minha mãe, bendita sejas,
orvalhada no pranto cristalino
da saudade das moças sertanejas!


                                                                          Ferreira Itajubá



quarta-feira, 12 de agosto de 2015

ALMA FERIDA



                                                                                                               O resto é silêncio...
                                                                                                                Hamlet


Henrique Castriciano


Deus ou Acaso, Acaso ou Providência,
Realidade ou sombra enganadora,
Matéria bruta ou luz da inteligência,
Quem quer que sejas, Força Criadora,

Por que me deste a mísera existência
Que não pedi, e o coração deplora?
Finde-se logo a rude penitência...
A vida é um mal para quem sofre e chora.

Orar! Por que rezar,  homens felizes,
Se o nada não distingue entre as raízes
Do ciprestal a múmia que se cala?

Na tumba escura, saberão os vermes
Que assassina os pássaros inermes
E o coração dos tristes apunhala?


                                                                       Henrique Castriciano

terça-feira, 11 de agosto de 2015

TRISTEZA DE ZARATUSTRA

Othoniel Menezes 

Por mais que o ansioso olhar abra, na imensa treva
do meu imenso orgulho, os segredos fecundos
das causas e das leis, na harmonia primeva,
- nunca decifrarão, meus olhos moribundos!

Meus impulsos febris, meus sarcasmos profundos,
e o ódio - o jaguar que o meu instinto ceva -,
não valem contra a força onímoda, que eleva,
no espaço, a multidão luminosa dos mundos!

Rebelde e alucinado, ando a acordar, em gritos,
essas dores mortais, meus males infinitos,
- síntese atroz do mal que, em todo crânio, estala...

...Entretanto, ao redor de mim, tudo é grandeza!
Mesquinho semideus, diante da Natureza,
é um mísero trilar de inseto, a minha fala...


                                                                        Othoniel Menezes


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

CAMINHO DO SERTÃO



                                                                                     Dedicado ao meu irmão João Câncio



Auta de Souza


Tão longe a casa! Nem se quer alcanço
Vê-la através da mata. Nos caminhos
A sombra desce; e, sem achar descanso ,
Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos!  

É noite já. Como em feliz remanso,
Dormem as aves nos pequenos ninhos...
Vamos mais devagar... de manso e manso, 
Para não assustar os passarinhos. 

Brilham estrelas. Todo o céu parece
Rezar de joelhos a chorosa prece
Que a noite ensina ao desespero e à dor...

Ao longe, a lua vem dourando a treva...
Turíbulo imenso para Deus eleva 
O incenso agreste da jurema em flor.

                                                                       

                                                                                Auta de Souza

Fonte: Preá 27 - Maio, Junho, Julho  2014



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

TUDO QUANTO SINTO CAMINHO

Yuri Hícaro

Minhas pernas são duas rodas
- eu danço.
Cego, vislumbro a vida em cores táteis, palpáveis...
Eu venço

Todo dia.

Há uma ponte que me foi tirada
na inconsolável estrada...
Descanso.
Meus braços empurram as rodas
- sinto lufadas de vento
que me jogam para trás.

Não desisto e me jogo, na resistência, feito lepra.
Insisto, ferido
e grito pela acessibilidade intrépida.

Auso voo em longos braços
minha miséria desperta compaixão

O sol não parece distante para os meus sonhos!

                                                                              Yuri Hícaro



quarta-feira, 24 de junho de 2015

DEFINE A SUA CIDADE

Gregório de Matos Guerra

De dois ff se compõe
esta cidade ao meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim que os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.


                                                         Gregório de Matos Guerra





quarta-feira, 17 de junho de 2015

OLHO POR OLHO

Anchieta Rolim
Ressurgirei das cinzas
sujo, imundo
trazendo comigo
apenas as certezas

Caminharei
de cabeça erguida
entre os mortos
serei o sobrevivente

Muitos
vão querer lavar-me
de mim
tirar as impurezas

Será tarde
não aceitarei.

                                                                           Anchieta Rolim




quarta-feira, 3 de junho de 2015

MUSA PARALÍTICA

Magela Cantalice

Nasci para cantar as coisas tristes,
para falar dos filhos rejeitados,
das pessoas sem casa nem sustento
que não têm um tostão para comprar
um metro, ao menos, de madapolão...

Eu canto a dor das massas proletárias
que gemem sob o guante dos burgueses...
Eu canto a dor dos choros sufocados,
canto a mísera sorte dos vencidos
e as ruínas desertas de Hyroshima!

Meu canto é o canto dos desventurados...

Eu sou aquele que ficou sentado
à porta das igrejas, mendigando...
Eu sou aquele que nasceu sem vista
e se meteu num beco sem saída.

Eu sou aquele que não teve amor!
Eu fui o pobre que morreu de fome,
depois de andar a pé léguas e léguas
atrás de um coração compadecido.

Eu canto a angústia atroz dos oprimidos...
Eu canto a solidão dos prisioneiros,
eu canto a indignação dos revoltados
e os grandes idealistas fracassados
e a tristeza abafada dos hospícios
e as misérias físicas da carne...

Eu canto a dor dos partos infelizes
e a negação dos ventres infecundos.

- Quem quer me revelar as suas mágoas? ...

Eu sou o homem que levou a vida
no desconsolo de ser aleijado...
Eu sou o poeta que morreu tossindo,
sob o vergão da vil tuberculose.

Eu sou aquele que dormiu no chão,
sob a marquise dos arranha-céus,
coberto por três folhas de jornal...

Nasci para cantar as coisas tristes.

A musa que me inspira anda de preto
e manca de uma perna: é paralítica!


                                                                         Magela Cantalice






segunda-feira, 18 de maio de 2015

O ÚLTIMO TROIANO

Claudio Castoriadis 
No seu colo derramou-se a geada
o estilhaço da regência

e pela narina da beleza
ilíada ensolarada
com sua crina
prefacial e
úmida

)servindo
de
proteção(

(i)
servindo de incêndio
(ii)
servindo de penacho
((iii))
servindo pela manhã


                                                                           Claudio Castoriadis


domingo, 10 de maio de 2015

2h15

Waleska Lopes
Junto os versos
Palavras que encontro soltas
Jogadas no chão dessa estrada
Por onde não findo de me estirar
Procurando onde a vista não alcança
O motivo pra poder parar

Faz da vida um nascer do sol
E para pra apreciar
Se firma no litoral
E espera a lua chegar
Tudo nessa vida
Tem um lado a se aproveitar

De nada é tudo dor
De nada, nada se tira
No amanhã ou no depois
Eu encontro a graça da vida!


                                                                            Waleska Lopes




PULSAÇÃO

Florina da Escóssia
Sobre a mesa
a tristeza
sobre a cama
se derrama
toda a fama
sobre o tapete
tira-se o corpete
quebra-se o topete
sobre o mosaico
do banheiro quase arcaico
quase tudo se encaixa
quando se está em vibrações da mesma faixa.

É sua roupa
que me deixe de touca
cheia de culpa.

É seu dinheiro
ou mesmo o tornozelo
que é meu travesseiro.

É sua autoridade
cheia de vaidade
que é desonestidade.
Sobre o meu peito
o seu beijo
que não é defeito
é desejo.

Sobre a barriga
você mendiga
com um olhar
o luar de nossas vidas.

Sobre a cabeça
você quer que eu esqueça
as canções e vibrações
que andam a nos rondar.

É seu tórax
seu sexo
com nexo.

É seu cheiro
que eu beijo
bem no queixo.

É sua risada
sua virada
sem dar uma olhada.

Sobre a casa
o luar
sob o luar
o mar
sobre o direito de sonhar
só nós podemos optar
sobre a vida
dividida
nada mais para serenar.

É seu sonho
que sonho
medonho.

É seu olhar
seu caminhar
sem falar.

Sobre o lírio
meu delírio
que também é seu
quando transformado em mel
sobre você
só eu posso dizer
sob você
posso me derreter.
Me deliciar
sobre mim
você pode falar
sob mim
pode sonhar
com o mesmo luar
que está sobre o mar.

Tudo em você me faz meditar
se vale ou não
a pena lhe amar.

É seu olho verde
seu puro leite
que é meu deleite.

Sobre nós
não mais
mas já pairou a paz
calamos a voz
já reinou a aflição
sombreando o coração
já lutamos em guerras
viramos feras
mas fomos capazes
de fazer as pazes.
É sua mão
seu coração
em constante pulsação.

É sua orgia
sua folia
cheias de magia.

Você todo me arrepia
e faz com que meu dia a dia
seja um agradável esperar.


                                                                       Florina da Escóssia