Para Pepe Escobar,
autor de uma reportagem
que foi guia do poema
nos rumos de Veneza
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Luis Carlos Guimarães |
I
Para chegar ao corpo líquido
de tuas artérias de água ,
ao teu coração salino,
ao teu pulmão que respira
oxigênio de mangue e paul,
deixo para trás o Continente
e desta ponte que salta sobre o mar
como serpente de concreto,
avisto o contorno de teus palácios,
pontes, casas, torres e igrejas
alicerçados sobre um chão de óleo escuro e oscilante
e quase decepados pelo alfange do horizonte.
Esta ponte sob um céu de zinco,
acachapante céu de zinco
quase a fundir-se ao mar negro,
parado mar de pântano
imóvel e compacto,
sem um calafrio na pele de pergaminho enrijecido,
sem um arrepio de febre,
nem o sopro sequer de uma brisa doente
para estremecer-lhe o dorso cor de ferrugem.
Há quantos séculos, Veneza,
celebram em tua intenção ofícios religiosos,
missas de Sétimo Dia e de Ação de Graças,
enquanto morres e ressuscitas
na metáfora de um fim sempre adiado.
Enquanto afundas milímetro a milímetro,
as paredes de calcário de teu casario
corroídas lenta e silenciosamente
pelas águas pestilentas de teus canais.
Veneza romântica, bizantina, gótica, renascentista,
(depois o barroco acrescentaria
o desregramento da sua fantasia)
com tuas esculturas
e afrescos derrotados pelos ácidos,
asfixiada e poluída pelas águas contaminadas
das fábricas da laguna
oxidando teus fundamentos.
II
A Veneza das igrejas de San Trovaso,
Gesuati e San Sebastiano.
Veneza de Tintoretto, Tiepolo e Veronese.
Do Gran Canal, a rua que ondula longamente
e se reparte no labirinto
dos desvios e becos dos 177 canais.
Adornada com colunas de mármore
da liquidação do Império Romano.
Com cavalos de bronze
do hipódromo de Bizâncio.
A antiga e sábia Rainha do Mar
do soneto de Alfieri.
Vermelha e negra,
de veludo e cetim,
a cidade pintada de Musset.
O antro da besta selvagem para Henry James.
O dédalo abjeto de Thomas Mann:
putrefato símbolo sexual,
apelo obscuro do amor e da morte.
Nas noites do Gran Canal
Byron nadava com uma lanterna
na mão para não perder o rumo das estrelas.
Veneza da Piazzetta onde São Teodoro
guarda no olhar o fogo da virgília.
Da aurora e dos címbalos flutuando
entre domos, fontes, estátuas, castelos e praças.
Dos delírios carnais de Tintoretto
despencando das alturas.
Da cor do céu de Tiepolo que Deus
tenta imitar nos crepúsculos venezianos.
No Ancoradouro dos Incuráveis
Nietzsche contraiu gênio
e sífilis de uma rameira.
Câmara mortuária de Wagner
que expirou contemplando o Gran Canal.
Na Ponte da Humildade
Ezra Pound tomava sol esperando a morte.
D'Annunzio explorou os porões de tua alma,
onde tudo era vapor, fadiga, consumação e cinzas
navegando na água negra
de uma gigantesca clepsidra.
Veneza que inventou a luz
entre a hipnose da laguna
e os reflexos do céu.
Veneza fêmea,
oferecendo o corpo nu
no leito aquático em abandonos sem-fim.
Cidade a ser exorcizada
pelas feridas da psique e da alma.
Por que não recolhes as máscaras do carnaval?
Quantas paixões dissimulas
com essas dálias funerárias
nos altares das igrejas?
Será miragem o espectro
de Veneza incendiada
no horizonte em chamas?
III
Vultos desaparecem nos labirintos.
Acima do eco dos carrilhões
a lua espelha no mar emparedado
o mármore das igrejas.
Se fosse no céu de inverno
(tampa comprimida sobre a cidade)
tuas torres como punhais ameaçariam a lua,
recurva, lívida e demente lua
vestida de trapos de nuvens.
No céu de verão as estrelas,
os olhos acesos da noite.
Apenas o ruído de uma barcaça recalcitrante
apinhada de turistas que retornam aos hotéis.
Na Praça de São Marcos sem pombos
rodam a sequencia de um filme fantástico:
efeitos especiais de iluminação
criam o simulacro de estação do inferno,
de cemitério lunar suspenso
nos ares de um céu letal
cingido por um arco-íris.
(O dia devolverá os pombos
que comerão migalhas nas minhas mãos.)
Meus olhos distantes acompanham
a gôndola vazia e seu gondoleiro solitário
que passam debaixo da Ponte dos Suspiros.
A lamentar o desterro da noite
badaladas voam com os sinos
em timbres graves e agudos
por cima de todos os tetos.
Sinos para anunciar a viagem da noite
nos canais violetas,
agachada entre muros cada vez mais escarlates.
Sob as cúpulas o silêncio
do caos fluindo
de trevas por baixo dos abismos.
Suspiros velejam além das águas.
IV
Veneza é um sonho de pedra edificado sobre a água.
Geografia irreal de um delírio arquitetônico.
Cidade Narciso em permanente êxtase,
siderada e enfeitiçada
pela imagem refletida nos canais,
com a revelação da face resplandecente,
dos adereços e joias,
das vestes de ouro e prata,
mas também das entranhas de lama e lodo,
do odor de latrina e decomposição
das passagens clandestinas
e dos meandros dos esgotos.
Fechada como concha,
num torpor físico,
num langor da alma,
num esmorecimento que dura séculos
agonizas enferma de tua própria beleza.
Violada a cada instantes pelos flashes
das máquinas fotográficas.
Nos cartões-postais mostras ao mundo
a intimidade da tua nudez
de Grande Cortesã dos Sete Pecados Capitais.
Suntuosa sinfonia fúnebre.
Calidoscópio alucinado.
Quando chegar a tua hora,
subirás aos céus
ou descerás às profundezas do mar?
Luis Carlos Guimarães